quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Limão de Chuang Tse

Mais uma vez o velho Chuang Tse se  internava no bosque, silencioso e lento como um tigre dos tempos antigos. Fazia paragens no meio do caminho contemplando as folhas outonais, a luz do entardecer entre os castanheiros centenários, a lebre súbita ou o esquilo misterioso. O seu passo era majestoso e singelo ao tempo. Elevava os seus olhos ao céu respirando com todo o seu ser. De súbito um falcão olhava-o por um instante e os seus olhos se encontravam num momento de cumplicidade fugaz. E assim Chuang Tse se internava no bosque rumo ao Grande Debate. 
Do interior do matagal que beirava o caminho surgiria aquela tarde uma surpresa. Tratava-se de Li Yu, o jovem caçador das mil armadilhas que de um ágil salto se apareceu perante o velho sábio.

- Mestre, não me reprocheis estas formas mas aceitai a um ignorante que precisa instruir-se num enigma. 

- Mas quem está aqui! O “Pequeno Raposo” –disse Chuang Tse- fazendo um jogo de palavras com o seu nome, pois no dialeto da zona “Yu” significava “raposo”, “ladino”. E que agora te dedicas á caça maior? Não estaria mal, vejo que tens talento. Mas diz lá, serias capaz de vender a pele de um velho tigre?

- Não vos riais de mim, Venerável. Os meus negócios são pequenos mas dizei-me: que necessidade tem de debater com o Grande Erudito Yao Tang?

- Por que o perguntas? 

- Ouvi dizer que os autênticos sábios não discutem nem se rebaixam a si mesmos com a banalidade da erudição. Aclarai-me este mistério, Mestre!

- Ainda lembro a vez em que falamos baixo o Carvalho dos Mil Invernos. Em aquele dia tínhamos acordado que a ideia de um eu e de uma personalidade eram um grande impedimento para a nossa sabedoria essencial. Lembras?

- Como não o vou recordar?

- Mas, então? Como podes fazer-me essa pergunta? É como se o tivesses esquecido completamente!

- Não compreendo. 

- Tu consideras a Yao Tang como uma entidade que não merece o contato com a entidade de Chuang Tse. Chuang Tse é para essa forma de ver as cousas algo de mais valor que Yao Tang. Mas, na realidade, Chuang Tse tem necessidade de Yao Tang porque Chuang Tse não é Chuang Tse e Yao Tang não é Yao Tang. Quando Chuang Tse serve a Yao Tang beneficia-se Chuang Tse mas se Yao Tang castiga a Chuang Tse sofre Yao Tang. Tu percebes ao Grande Erudito Yao Tang mas Chuang Tse vê ao Yao Tang que não é Yao Tang.

- Ó, Mestre, que grande humildade! Agora compreendo! 

- Não digas isso, Li Yu. Isso é uma ofensa ao teu Mestre. Não ponhas palavras vulgares à Graça do Grande Mestre Original que une a Chuang Tse, Yao Tang e Li Yu. Não há humildade, não há arrogância. Essas palavras só servem para caçar incautos e nós aqui não precisamos armadilhas.

- Desculpai-me, Mestre. As palavras perdem-me. 

- Sei-o, Pequeno Raposo. E a quem não? Mas no mesmo momento que acabavas de dizer essas palavras sentiste-te mal. Insubstancial e insatisfeito.

- É certo. 

- Mas quando não falas és um Grande Caçador. É um bom começo. Deves esperar acaçapado e observar. De jeito que quando estejas presente no Grande Debate não sigas só as palavras de Yao Tang ou de Chuang Tse. Não te inclines a um lado ou a outro. Não te identifiques com as pessoas.

- Isso é difícil. Tenho certa antipatia por Yao Tang. E não suportaria que ele vencesse no Grande Debate. 

- Querido Li Yu, deste jeito obrigas-me a ser derrotado, pois temo que faria um mal com a minha vitória. Mas será o que tenha que ser. Que importa isso? 

- Vamos, pois. Já anoitece. 

O céu estava avermelhado enquanto os mochos entoavam os seus primeiros avisos. O Pequeno Raposo saiu correndo por um atalho em direção á praça central do Grande Debate enquanto Chuang Tse seguia parcimoniosamente o seu caminho contemplando as nuvens ensanguentadas, a velha lua acesa com os seus cabelos brancos, e o Yin misterioso da Noite. Ao chegarem á praça uma suave brisa movia os faróis e os estandartes dourados. Contemplava os camponeses, os lenhadores, os homens e mulheres apinhados em torno ao Grande Cenário. Vestiam os trajos tradicionais, como nas grandes festas, com as suas galas de cores, os seus chapéus, os seus machados cerimoniais... Algumas mulheres puseram as joias mais antigas e ancestrais. Alguns homens mostravam espadas e punhais incrustados de pedras preciosas usados nos rituais, mas de um jeito discreto e contido. No momento em que Yao Tang e Chuang Tse entraram no cenário do Grande Debate centos de lenços brancos e pretos agitavam-se no ar. Era um estranho efeito de sucessão e harmonia enquanto um leve vento agitava os faróis amarelos e os estandartes dourados. O grande mestre confuciano Chi Yi era o arbitro e só quando um silêncio sepulcral percorreu a grande praça fez a apresentação.

- Desde há seis luas começou o Grande Debate e desde então vieram pontualmente ao seu encontro o Grande Erudito Yao Tang e o Grande Mestre Chuang Tse. Com o fim de recordar os elementos principais das teses dos nossos mestres farei uma breve síntese das mesmas segundo o protocolo de anotação deixado pelo nosso Grande Mestre Confúcio: 

“Segundo Yao Tang a Forma não é separável da Realidade, de maneira que todo ser ou objeto pode e deve ser experimentado numa forma própria que lhe dá o seu sentido e substancialidade. Deste jeito toda cousa possui uma forma específica sem a qual não é possível falar da mesma. Assim uma casa é uma casa porque possui a forma de uma casa e o ser humano é um ser humano porque possui a forma de um ser humano. Estabelecer uma realidade independente ou essencial além do aparente ou da sua forma não é só absolutamente indemonstrável, mas também uma perda de tempo para a investigação do sábio” 

“Segundo Chuang Tse a Realidade não pode ser reduzida á forma senão que vai muito além desta. Não é a forma da casa o que faz a casa mas a sua não-forma a que dá o seu sentido e utilidade. Do mesmo jeito não é a forma do homem a que faz ao homem porquê: que distinguiria um homem morto de um vivo?. Por outro lado a realidade essencial projeta uma unidade que contempla as formas como meras convenções. Para Chuang Tse pretender que as Formas são determinantes da Realidade seria como se o nome fosse a cousa. Mas a palavra “carro” não é um carro e a forma de uma gato não é um gato. Pois um gato com três patas continua a ser um gato e um homem monstruoso segue sendo um homem”

- Dou a palavra ao Grande Erudito Yao Tang – disse Chi Yi 

- Os exemplos sobre as cousas não carecem totalmente de interesse, mas pode que a nossa argumentação deva dirigir-se àqueles aspetos de caráter humano que nos são mais necessários: a justiça, a beleza, a generosidade ou a verdade. Diz, Chuang Tse, como poderias justificar a inexistência da forma como o determinante nestes casos? Em quê outra maneira poderíamos perceber a justiça senão através de um procedimento justo, formalmente estabelecido? Como poderíamos falar de atos generosos sem as ações visíveis da generosidade? 

- Ó, Yao Tang, por um momento pensei que o teu ataque seria mais demolidor, mas vejo que começas com a guarda baixa. 

- A que te estás a referir?

- Diz-me, Yao Tang, apresenta-se a injustiça, a fealdade, a ruindade ou a mentira abertamente ou precisam de roupagens? 

- É óbvio que precisam de roupagens. 

- E não serão essas roupagens tiradas das tão formosas palavras que tens pronunciado?

- O que queres dizer? 

- Não será a maior injustiça aquela que se apresenta como justiça?

-Concordo.

- Não adotará a injustiça as formas, vestes, e maneiras da justiça do jeito mais sutil? Pode, então, a mera forma ser um indicativo da Realidade? Como distinguiríamos o justo do injusto se ambos têm a mesma forma?

- Admito que foste hábil, Chuang Tse, mas pareces esquecer algo importante.

- De que se trata?

- Sem dúvida um é o original e outro é a cópia. E uma cópia nunca será tão perfeita como o seu original. De fato a cópia o que faz é reconhecer o valor supremo da forma. Mesmo a injustiça reconhece a forma da justiça como real.

- Es muito otimista, Yao Tang, e isso tem o seu valor. Mas diz lá agora uma cousa: de onde toma a justiça mesma a sua própria forma?

- Que pretendes dizer? A justiça é a própria forma! Não a toma de nada.

- Se isso é assim, a injustiça mesma deveria voltar-se justa ao adotar a sua forma. Maravilhoso, Yao Tang. Como poderia estar tão enganado? 

- Pois é aqui onde tu, e os que são como tu, errais. Se se insiste na celebração dos ritos e costumes nobres, é para levar o homem a adotar as formas justas. Deste jeito voltará-se justo inevitavelmente. É o seu afã de inovação e a sua rebeldia o que lhe faz assumir pretensões que o levam ao abandono do legítimo e da verdade.

- Mas essa verdade, Yao Tang, é a verdade que podes conseguir de um cavalo ou de um macaco das feiras. Já reparaste? Há pouco tempo esteve cá O Circo das Salamandras e surpreendeu-me ver como um macaco realizava todas as atividades de um homem. Até sabia rezar ajoelhado. O público estava entusiasmado. Uma mulher queria-o levar por mil moedas de ouro. Que tens a dizer, Yao Tang? 

- Sempre igual, Chuang Tse. Pareces sábio, mas onde está a tua humanidade? Mofas dos costumes e da honradez das pessoas. Mas todos podem ver que os homens não somos animais! 

- Admitirias que é mais fácil mostrar a forma de um objeto que a forma de um ato justo?

- Que queres dizer? 

- Digamos que é mais fácil mostrar a forma de um limão que a de uma verdade, por exemplo.

- Admito que é assim.

- Se um ato justo tem que ter sempre uma forma justa, um limão deve ter sempre a forma de um limão, não é assim? 

- Evidentemente.

- Portanto um limão que não tenha a forma de um limão não pode ser um limão, estás de acordo? 

- É indubitável. 

Nesse mesmo instante Chuang Tse tirou um limão dos pregos do seu manto. O limão estava aberto por uma grande fenda central que o separava em dous grandes lábios. O limão não parecia realmente um limão. Yao Tang estava paralisado. Depois de uns breves balbucios conseguiu falar.

- Isso...não é um limão. 

- Mas é um limão! 

- A forma não é de um limão, portanto não posso aceitar que seja um limão. 

- Toma, apanha-o, cheira-o. Cheira a limão. 

- Não, não...é um truque. Ah! 

Chuang Tse parecia gozar como uma criança enquanto o público perdera a sua solenidade. Homens e mulheres riam e comentavam a situação. O inesperado acontecia de novo, mais uma vez. Todos podiam ouvir as gargalhadas de Chuang Tse que chorava com o riso. Yao Tang falava com Chi Yi, o árbitro confuciano, rígido, mal-humorado e exigente. Então Chi Yi se pôs em pé e pediu silêncio porque ia decretar o final do Grande Debate:

- Declaro vencedor do Grande Debate ao Grande Erudito, Yao Tang. O Grande Mestre Chuang Tse incorreu numa intolerável ofensa à forma e os costumes da nossa nação ao introduzir um elemento não contemplado nos procedimentos. Sob nenhum caso fica estabelecido que um feito empírico seja um elemento provatório no debate. Portanto, declaro perdedor a Chuang Tse por infringir as normas estabelecidas e os seus métodos formais. 

Chuang Tse voltava para o bosque com a soltura de um tigre jovem, sentia-se ligeiro e alegre. Livre e singelo. À entrada encontrava-se com Li Yu, esperando-o. 

-Olá, Pequeno Raposo. Estás triste?

- Por que deveria está-lo? 

- Perdi o Grande Debate. 

- Digamos que Yao Tang tem a forma da Vitória e Chuang Tse tem a forma da Derrota. 

O velho mestre sorriu com uma grande cumplicidade enquanto se internava no bosque. 

- Obrigado, Mestre. 

- Obrigado, Li Yu. 

- Mestre, algum último conselho?

- Se te oferecerem cuidar um galinheiro, não aceites, Li Yu. 

Pequeno Raposo sorriu e, levantando uma mão, perdeu-se entre os carvalhos centenários. 


Chuang Tse foi-se esfumando a pouco e pouco no bosque, na espessa noite muito além das formas.

domingo, 26 de junho de 2016

LUA DE ANATÓLIA



-Eu sei o que há no Alcorão
-E que há no Alcorão?
-No Alcorão há uma flor prensada e uma carta do meu amigo Abdullah.

(Dito da tradição Bekthasi)

I

Rustam Ciçek fez um aceno sobre a falua branca que se alçava na noite branca. O gesto amável e decidido sob a lua e os vidros estilhaçados do magnífico serão iluminado. Rustam Çiçek era o capitão inclinado e a melodia do seu sorriso elevava-se ao vento do sol-pôr, punha os seus longos dedos entre os cabelos e a brisa do mar, enquanto Ibrahim cantava, sussurrando, uma canção de berço tão antiga como as rochas da Anatólia. O barco ancorava na praia das Ilhas Afortunadas e uma nova e deliciosa nota procedia das ânforas antigas, dos toneis de vinho, do trigo acumulado, dos basaltos e as flores das ruas em fogo.

- Que a paz seja contigo, ó terra afortunada!- dizia Çiçek

– Que a paz seja contigo, ó terra por sempre amada! -dizia Ibrahim

Os pássaros começavam a reunir-se sobre os telhados vermelhos: as gaivotas embranquecidas, os corvos insones, as corujas pacientes esperavam aos amigos. Cumprimentavam e até falavam na sua linguagem misteriosa e comunicante. Então Ibrahim e Rustam Çiçek ficavam durante um tempo em silêncio, a ouvir as suas subtilezas. Uma grande gargalhada explodia como cores que se espalhavam pela vila de ruas de madeira e janelas de zinco e todas as aves acompanhavam aos arlequins e navegantes da noite.
Oh, a elevada e viva noite das palavras enfeitiçadas, da magia das afinidades secretas, das cumplicidades de pedras e pássaros, de rosas e rochas, e homens de beleza extraordinária!
Clara e Ofélia esperavam no grande pátio da Ilha, no mercado aberto ás estrelas, aos comerciantes fenícios, aos gregos, aos árabes, aos refinados homens das terras de Sião, aos iemenitas ou ás sinuosas e belas mulheres do Indostão. Os matemáticos, os filósofos, os poetas e também os músicos esperavam enquanto as vozes e as notas provocavam um evocativo murmúrio de ancestrais caracolas e planetas longínquos. Os velhos e antigos países da terra se acendiam no peito e nos corações que alumiavam todas as lendas e velhas histórias de chá e amêndoas, de tâmaras e princesas. Clara erguia-se elegante e esbelta, a saia de uma seda selvagem envolvia o seu corpo estilizado, enquanto a sua cabeleira de ouro encarnado tirava os fios do sol que se ocultava no mar azulado e negro.
Rustam Çiçek e Ibrahim olhavam para Clara e Ofélia e respiravam profundamente, e fechavam levemente os olhos, a ouvir, a ouvir…
E tudo conspirava agora nas mais longínquas constelações. Uma remota amizade envolvia o círculo da memória. Um vento assobiava na pele viva da terra, nos corpos maravilhosos de uma arte régia e obscura: eram os olhos de Ibrahim ao contemplar a Ofélia, a dança de Clara e Çiçek que comovia aos filósofos e aos poetas, aos sábios da China, e as próprias Ilhas Afortunadas tremiam de soluços e cócegas.

Canção
Hoje vi as estrelas na mão do meu amado
os seus lábios eram mudos e os seus dedos
eram o suave mel dos meus cabelos
E eu canto toda a noite o velho fado
prendida pelo vento aos tornozelos…
Um beijo de fogo e gelo, um raio vivo
esta noite sou feliz c’o cervo amado
e ofereço as minhas tranças e cabelos
e as pétalas de rosa pelo trigo
ao rei que me prende os tornozelos…


II

Olhai agora, ó amigos, os azulejos e os basaltos das fontes antiquíssimas, a elaboração artesanal do conto que flui na noite única. Escutai, pois, as palavras de Rustam Çiçek que pausada e gravemente tece uma antiga história no cenário da Ilha, perante os barcos veleiros e os pátios iluminados, na praça central do mercado. Os vidros e os cafés, os guindastes e as prateleiras, as montras das lojas ocultas na memória, o bazar de cobre sobre tapetes vermelhos, as chávenas e o chá oferecido em silêncio, no silêncio cúmplice de uma fala antiga…
- Houve uma vez, ó nobre e digna gente – dizia Çiçek com um sorriso e uma piscadela de olho – um rei conhecido como Hatim Tai, o homem mais generoso que jamais existiu. A sua prodigalidade e as suas festas eram proverbiais e assim era amado pelo seu povo. Austero e generoso, loquaz e sóbrio, gentil e reservado, combinava em si todos os contrários e paradoxos da humana condição, envolvidos na harmonia de uma sabedoria imemorial. A felicidade e a satisfação reinavam na terra de Hatim Tai.
Mas a inveja e a cobiça ilimitada espreitavam num reino vizinho e um dia a negra ameaça tornou-se real. O pequeno reino de Hatim Tai estava pronto a ser arrasado. Então o nosso nobre rei compreendeu que por muito que se esforçasse em deter o ataque, afinal seriam derrotados, tal era a superioridade do exercito atacante. Deliberou profundamente que estratégia seguir e, finalmente, tomou uma decisão. Chegou a um trato com o rei vizinho: deixaria o trono e assim se evitaria um derramamento de sangue mas o novo rei devia-se comprometer a manter a situação de direitos e propriedades das que gozavam os seus súbditos.
Hatim Tai fugiu para o monte e tomou o manto dos dervixes.

A um aceno das sobrancelhas de Rustam Çiçek todos começaram a cantar, com especial ardor as crianças.


(Hatim Tai deixou o trono
a um rei falaz, soturno e duro
sem luta, sem raiva, sem fogo
Hatim Tai levava o povo
dentro do seu coração puro!)

A noite era cálida e antiga, e havia uma voz que sussurrava nos corpos, em sílabas apenas intuídas, nas janelas e luminárias de uma rapariga perdida numa cidade longínqua a reler os velhos arcanos de um conto do Talmud. Ou a história do navegante próximo da lua a recordar a rapariga-filósofa, florindo e sangrando no seu coração.

Os pássaros falavam com Ofélia e Clara, animadamente. A coruja, o mocho, o corvo elevavam-se enfebrecidos pela história de Hatim Tai. Ó, Hatim tai, o nosso amado e generoso Hatim Tai- diziam. O corvo, entusiasmado, lançava um pronunciamento profético. A coruja e o mocho balançavam sopesando as suas palavras e, com tenra gravidade, matizavam diplomaticamente as suas fulgurantes expansões do que, inevitavelmente, teria que acontecer.
- Muitos súbditos guardaram a boa memória do rei mas não todos – continuava Çiçek. Alguns começaram a pôr em dúvida os seus atos, pensando que tinha escolhido uma forma fácil de fugir aos problemas sem assumir a verdadeira responsabilidade do seu cargo. Outros não falavam mal dele mas os seus corações arrefeceram como crianças que não compreendem a ausência do pai que deve trabalhar longe para sustentar a família.
A fidelidade e a lembrança que na maioria dos súbditos ainda permanecia firme fez ao rei usurpador proclamar um bando em que se ofereciam mil dinares de ouro ao que capturasse a Hatim Tai. No fundo, era uma permanente ameaça ao seu poder e já estava arrependido de ter feito trato algum.
Um dia Hatim Tai caminhava pensativo pelo bosque quando ouviu uma conversa:
– Se tão só tivéssemos a sorte de prender a Hatim Tai, seriamos ricos e felizes para o resto das nossas vidas, especialmente a tua, pois eu já tenho pouco tempo por diante – dizia um velho lenhador à sua jovem esposa
– Deverias sentir vergonha, disse ela, de falar desse modo do nosso rei. Ele que se sacrificou a si mesmo pelo nosso bem-estar. Uns poucos mais que pensem como tu e a sua vida terá sido em vão
– Essas palavras são muito belas, mas quem sabe se o não fez pelo seu próprio interesse?. És muito nova e muito ingénua.
Então Hatim Tai, apresentou-se diante do lenhador e disse-lhe:
– Aqui estou. Eu sou Hatim Tai. Leva-me diante do teu rei e obtém o ouro que tanto prezas.

(Hatim Tai deixou o trono
a um rei falaz, soturno e duro
sem luta, sem raiva, sem fogo
Hatim Tai levava o povo
dentro do seu coração puro!)

- Oh, Hatim. Tu és o meu rei. Como poderia eu fazer isso? Perdoa as minhas palavras de fraqueza e estupidez.
Mas nesse momento apareceram um grupo de soldados e apressaram-nos, levando-os todos à corte. O lenhador ia cabisbaixo e sem dizer uma só palavra, como se esperasse uma sentença de morte.
Quando chegaram ao palácio os soldados pretendiam ser os captores de Hatim Tai e assim cobrar a recompensa. Produziu-se uma pequena confusão, quando Hatim Tai pediu falar:
– Majestade, penso que eu devia ser também ouvido. Foi este velho lenhador que me capturou e deve ser ele quem cobre a recompensa. O lenhador ficou estupefato. Começou a falar:
– Majestade, não foi assim que aconteceu. E contou como Hatim se tinha entregado depois de ter ouvido a conversa com a sua mulher.
O novo rei estava assombrado. Ainda falou a gaguejar:
Oh!, Hatim, que fazer?. Se te mato viverei à sombra da minha vileza escurecido pela lenda da tua generosidade, que se engrandecerá. Se te encadeio será um constante motivo de rebelião, que acabará finalmente comigo, pois ninguém pode dominar de jeito duradouro sem a legitimidade do seu povo. Por favor, recupera o teu trono e aceita-me como amigo, de jeito que a minha riqueza seja que acudas aos meus convites, pois ninguém pode competir com os teus.
Hatim sorriu e disse:
– Está bem, aceito o trono – e pondo a mão sobre o queixo, disse:
– E pensarei o dos teus convites!

(Hatim Tai deixou o trono
a um rei falaz, soturno e duro
sem luta, sem raiva, sem fogo
Hatim Tai levava o povo
dentro do seu coração puro!)


Olhai, amigos, a música das balalaicas do Bósforo escrita nas páginas vermelhas do assombro. A dança dos pássaros e as crianças que tingem de gozo o conto de Çiçek enquanto as cumplicidades subtis se elevam com dignidade: os lugares de confiança das mulheres!.Clara e Ofélia levavam a lua na mão e nos dentes a sorrir, a sorrir…


III

Ó Lua encantada no fundo do poço,
Moirinha da Mágoa! 
O balde descia, quimeras de Moço! 
Trazia só água…


(António Nobre, Só)

Houve na alvorada um movimento das águas, o verde mar parecia remoinhar-se quando o ferreiro Mago apareceu. O ferreiro Mago há tanto tempo desaparecido!. Carregado de redes e bigornas, o seu cabelo e barba vermelha, o seu manto régio e encarnado e, sobretudo, o seu rosto, sereno e sério. O ferreiro Mago era uma estoica aparição que caminhava pela praia, lento, parcimonioso, como se uma velada tristeza opaca-se a sua figura.

Outrora era o contador de contos que numa dança de espadas deixava que os espectadores recebessem o último bocado da estória como se dum alimento vivo se tratasse. Realmente era um alimento vivo. “O narrador viu que sim, que entendiam... podia continuar” Mas agora parecia transformado. Era o mesmo e não era o mesmo. A última vez jogava uma partida de xadrez perfeita, jogava a sua liberdade cada noite no Pavilhão Vermelho. Era assim...? ou pode que a memória se tenha transmudado? 

Houve certa solenidade entre os amigos perante a visita inesperada. Um silêncio inundou a espontânea alegria quando, gravemente, Mago falou...

- Hoje um grande peixe falou-me. Foi uma conversa difícil, pois ele pedia-me mais do que eu poderia nunca oferecer mas consegui um trato. Levaria um sonho dum amigo, um sonho especial. Só isso poderá redimir o vínculo que agora nos une. Alguém de vós pode oferecer-me o seu sonho?

Alguém de vós pode oferecer-me o seu sonho?- repetiu.

Os amigos mostravam-se hieráticos e amáveis. Olhavam com certo distanciamento a Mago. Olhavam-se uns aos outros esperando uma resposta quando Ofélia avançou um passo. O seu vestido de flores e versos, a sua cadência, o seu estilo nobre e compassivo acertou a falar com singular gravidade:

- Querido amigo Mago, durante anos foste uma companhia sóbria e nobre. Sempre foste para nós uma presença que nos conferiu um ponto de estilo e solenidade. A nossa juventude aventureira e alegre sempre foi balançada pela tua estoica virtude. Intuímos sempre em ti sofrimentos não mencionados e destinos submersos. E isso sempre foi para nós um aviso e um jeito de nos manter acordados sem entregarmo-nos, solitários, a um destino feliz mas insulso. Hoje, amigo, quero oferecer-te o meu sonho. Esta noite, enquanto a fogueira ardia perante o mar e as faíscas e as labaredas voavam até as estrelas fiquei levemente adormecida... e um grande peixe veio a mim...

- Que bela es, oh mulher! – dizia o peixe extraordinariamente azul!
- Quem es, que queres?- perguntei hesitante e temerosa.
- Es bela sim mas...
- Mas que?
- A tua beleza não é suficiente... e algum dia será a tua desgraça!- disse o peixe azulíssimo

Devo dizer que nesse momento senti que a sua voz era maligna e que algo terrível podia acontecer, realmente. Um medo terrível ensombreceu o meu mundo. Tudo parecia perder cor.

- Pensas que sou maligno não é assim? Mas deverias conhecer-te melhor. Pode que eu não seja mais do que um pedaço de ti!

Ele conhecia os meus pensamentos!. Quem podia ser? Uma terrível curiosidade embriagou-me quando ele voltou ao mar. Foi-se afastando rápido, rápido, rindo a gargalhadas. Que terrível riso!

Por um momento fiquei gélida, imóvel, quando o suave zéfiro bateu no meu rosto e senti uma quietude, um calor que acendia o meu ser propagando uma tenra calma.

- Não tenhas medo do peixe azul, filha - disse uma voz suave e maternal. Ele tem razão, ele só é uma parte de ti.
Caminhei pela praia ao vento. A lua era amiga e o mar chamava por mim e eu caminhava, caminhava pelo mar adentro. Comecei a ser rodeada por milheiros de peixes de todas as cores: verdes, brancos, vermelhos, azuis, como um grande arco-íris flutuante. Ao longe um grande veleiro olhava-nos. Os peixes, grandes e pequenos, berravam-me, assobiavam, saltavam diante de mim. Então comecei a me oferecer. Primeiro um pedaço da minha mão. Fui partindo e lançando os meus dedos, os pés. Sentia cócegas e os peixes brilhavam com intensidade. Deixei-me cair nas águas a dissolver-me enquanto as suas bocas me comiam, me bebiam. As cores do meu vestido também se dissolviam e toda eu me expandia no mar. E era feliz, e intensamente alegre. Tudo me fazia cócegas.

Eu estava outra vez na praia, serena e limpa, quando o peixe azulíssimo apareceu. Olhou-me amorosamente e disse:

- Obrigado, amiga. Já estou curado. 

Mago fez uma digna inclinação, absolutamente silencioso, revelando um profundo agradecimento perante todos os amigos. Começou a andar novamente solitário. Ao passo dum certo tempo estava no centro do negro mar. Um ponto vermelho no negro mar.



IV

Autum

A touch of cold in the Autumn night/ I walked abroad,/ And saw the ruddy moon lean over a hedge/ Like a red-faced farmer./ I did not stop to speak, but nodded,/ And round about were the wistful stars/ With white faces like town children.


Outono

Um toque de frio na noite de Outono /Eu ia ao estrangeiro,/ e inclinada sobre uma cerca vi a lua avermelhada/ como um granjeiro de rosto rubro./ Não me parei a falar, mas movi a cabeça,/ e em toda a parte estavam as pensativas estrelas/ com faces brancas como crianças de povo.



(Thomas Ernest Hulme)



Era o tempo da vindima, o outono da luz oblíqua, das primeiras folhas amarelas á beira dos caminhos. Os animais carregados de uvas, e a paisagem tingida da cor das violetas, as roupas embebidas de sangue obscuro, os rostos alegres, luminosos. Os sendeiros da transformação do cobre outonal, o ritmo musical dos trabalhos e dos dias: o magnífico serão de fogo, a noite como uma roda de danças e cantos.

Os amigos contemplavam as filosofias implícitas, a matemática precisa do bailado teatral do mundo.

- Pode ser –dizia Çiçek – que precisemos uma invocação e um encantamento das palavras para que o diálogo alcance o tom preciso, o estilo depurado, a consciência íntima.

- Certamente – diria Ibrahim- não dizemos sintaxe mas “táctica e posições das sementes significantes”.

- Os amigos riam e Clara e Ofélia olhavam o inicio do jogo improvisado mas pautado pela cadência rítmica e gestual.

- Semântica, é na verdade – dizia Çiçek – “a mântica das sementes mentais“. Não nos confundamos. Trata-se de uma “phisis” da compreensão. A palavra deve ser plantada e a cultura é, em realidade, agricultura. Estes são os alicerces. Isto é filosofia – dizia com convicção.

- Deste jeito- ia dizendo Ibrahim- a compreensão da “dinamis” (potência) e a “energeia” (acto) resulta muito mais clara. Então Aristóteles não é o que parece.

- Nada é o que parece! – sentenciava Çiçek.

- Aristóteles oferece um bom húmus- intervinha Clara- onde algumas sementes podem desenvolver-se. Há uma terra onde crescer, há um campo fértil mas pode que o elemento fogo e o elemento ar sejam insuficientes. De facto o cultivo de arroz poderia ser bom aqui mas outras plantas ficariam asfixiadas. Pode que os frutais padecessem. Mas o carvalho poderia ser!

- Concordo, dizia Ibrahim, mas haveria que ver caso por caso. Em alguns lugares o carvalho é ideal mas não, precisamente, o arroz. Não vejo inconvenientes para as laranjeiras ou algum tipo de macieiras, eventualmente.

Clara pôs um gesto hesitante e arquejou as sobrancelhas, algo incrédula.

- Em todo o caso – disse Ofélia – não são campos para ajardinar. Fazer um jardim com o material aristotélico resultaria, finalmente, opressivo. As flores mais delicadas não poderiam sobreviver. As cores mais subtis estragariam, mas concordo que tem muito alimento.

- É evidente que para certas perspectivas há muito negócio mas para nós acabaria por ser uma ruína, não há dúvida – dizia, sorrindo, Ibrahim.

- Estamos a perder o fio do tapete, disse Çiçek. Penso que devemos aproveitar estes momentos um tanto prosaicos para indagar os princípios mesmos, pois tenho ouvido que em certos territórios obscuros fazem uma distinção entre mito e logos tão extrema que suspeito devem ser lugares onde existe uma ditadura tão infame que as sementes nem chegam a nascer.

- Certamente são lugares onde existem palavras sem compreensão, ciência sem princípios e arte sem gratidão – afirmou Clara.

- É algo possível, realmente? – perguntou Ofélia.

E Ibrahim afirmava com gestos de resignação e inquietude:

- Certamente é possível mas não é real!

- Tenho entendido que nos lugares obscuros dos que falei fazem uma distinção que considera o logos como lógica e o mito como ilusão – disse Çiçek

- O que fazem – retorquiu Clara – é uma assimilação do logos sintático, se quiserdes, do logos com táctica, ao logos seminal ou semântico.

- Este desligamento interno do verbo ou palavra converte o discurso em manipulação quando não em guerra ou violência aberta. E antes de que Ibrahim pudesse acabar interveio Ofélia:

- Produz uma separação artificiosa das polaridades, elimina a tensão dos contrários, conduz ao homem á guerra medrosa e falsa e á mulher á passividade que não sabe educar ao seu povo. Que triste!

- E, sobretudo, não se suporta o silêncio – disse, harmoniosamente, Clara.

A palavra silêncio produziu em todos um efeito catártico. De súbito tomaram consciência do perigo no que se achavam. Por um momento, a verdade que os punha num contato subtil pendia dum leve fio invisível. E o silêncio estendeu-se, suave e macio, nos amigos e nos poetas, nos espectadores e até nas velas cristalinas que anunciavam a lua avermelhada.

De novo os olhos de Çiçek e Ibrahim contemplavam a Clara e Ofélia. Eram novamente as crianças de olhos luminosos nas terras afortunadas. A filosofia real parecia voltar ao seu ser, e o recordo do tempo inaugural inundava, como uma fonte antiquíssima, os seu corações. “E os olhos eram lavados pelas cristalinas gotas de um mar interior de peixes e pássaros voadores”. Foi então que Ibrahim pronunciou umas palavras:

- Queridos amigos, já que uma pequena mácula tocou hoje o nosso encontro gostaria de vos oferecer um poema que faça honra e justiça á nossa amizade e que purifique os ares de toda malignidade e presunção.

Todos os amigos inclinaram a cabeça em amorosa saudação enquanto uma jovem tingida da cor das lilás começou a tocar o nei.



Pensar

pensei que os teus cabelos fossem trigo
que me trouxe o vento para debicar
pensei que as rosas bravas do jazigo
eram versos de inverno para amar

pensei que a lua pintada nos teus olhos
fosse uma estrela lançada desde o mar
pensei que as janelas sem abrolhos
eram portas secretas ao teu lar

pensei que os teus cabelos fossem trigo
que o vento me trouxe para debicar

(nas tardes de Anatólia sou, amiga,
uma rosa de nenhum lugar)

pensei que o mel fosse destino
de corpos destinados a se amar

que as pedras fossem no caminho
antigas lendas para além do mar

pensei sem palavras e sem vinho
deitado junto às vides do lugar

que os teus cabelos eram trigo
enlaçados aos meus dedos para amar…

(- Dizei-me, ó meus amigos,
se pensei, sinceramente,
bem ou mal.)

domingo, 22 de novembro de 2015

Precisa-se médico cardiólogo


O 12 de novembro minha irmã chegava a Paris desde Rabat (onde mora). Enviava-me um whatsapp em que me dizia que acabava de recolher na caixa de correio  o livro cuja foto ponho aqui. É um livro cuja edição espanhola tenho desde os anos 90, quando ainda era estudante de filosofia na Faculdade. Um leitor de Nietzsche que lia Al Sulami não encaixava no modelo mas tem a sua lógica, podem estar certos. Desde então não tenho um especial interesse na filosofia ocidental. Para exprimi-lo de um jeito simples, acho que está poluída por um excesso de "ego". Isto podería estender-se aos produtos culturais. Não se trata só dos conteúdos mais ou menos racionais quanto uma certa "emanação" pesada, obscura, um virus que provoca uma  terrível doença ego-maníaca, pode ser sutil, pode ser patente mas está aí. Terrível. Quando notamos isso em nós, quando notamos o perigo em que estamos é preciso tomar medidas. Existe uma "transferência sutil" que vai além do aparente conteúdo, é como um alimento ou um ar. Precisamos respirar outra cousa. Quando tomamos um jornal nas mãos ás vezes podemos sentir um cansaço ou simplesmente como uma certa náusea. Não é momento de ler. Deixamos a um lado.

Como escreve Sayd Bahodine Majrouh no seu livro " O riso dos amantes":

Amigos, porquê seres inteligentes caim tão facilmente na trampa do Dragão? 
...
Não tenháis medo mais que de vós mesmos
enfeitiçados amigos
Bem sabéis que o Dragão do horror 
habita no vosso coração
é de ali de onde vem a tormenta
é ali onde nascem os dragões
Não tenháis medo mais que de vós mesmos 
se vos seduz o horror!
Os loucos que vos assustam estão menos tolos que os reis!  

Certo que isto vem a propósito do que aconteceu em Paris. Não há muito que dizer, realmente. Mas leva-me a pensar que se um virus fosse introduzido na população dificilmente o poderiamos combater com ideologias, com consignas, com dialéticas ou com armas. Procurariamos a ciência médica, procurariamos um bom médico.

É uma doença que ataca o coração. Precisamos de um cardiólogo, de um bom cardiólogo.

sábado, 23 de maio de 2015

Duas lembranças pessoais: sobre os muçulmanos.

Quando ainda era um estudante conheci um sociólogo valenciano que foi durante muitos anos professor de sociolingüística na Universidade de Barcelona. Um homem brillhante, extraordinariamente inteligente.  Falava muitas línguas, admirador da cultura anglosaxónica, conhecedor das histórias mais surpreendentes e estranhas da cultura europeia, era ademais  um grande admirador do mundo latino. O seu sentido crítico era agudo e tinha viajado por muitos paises do mundo. A primeira vez que o conheci lembro que foi na casa de um amigo, na Corunha. Estivemos a conversar umas duas horas e depois descimos á rua para dar um passeio. Nunca o disse a ninguém mas houve um instante em que senti um forte e intenso "amor"de jeito que tive que conter-me para não dar-lhe um abraço diante da sua esposa num momento em que estávamos a falar na rua. Eu teria uns 20 ou 21 anos e  era a primeira pessoa na minha vida que me tinha tocado de aquele jeito. Era assombrosa a sua capacidade de jogar com os paradoxos, de questionar os lugares comuns. Eu conectava com uma inteligência, que me deleitava. Não se tratava só da erudição, que era imensa, mas do jeito tão fora do comum de estabelecer relações e a maneira humorada de o fazer. Ele moveu em mim algo que descolocou tudo o que eu sabia até então. Passaram os anos  e eu fiz a minha própria evolução. Perdimos o contato durante muito tempo até que um dia o recuperamos via internet. Falei-lhe de tudo o que me tinha acontecido e numa altura falei-lhe do sufismo, do importante que tinha sido encontrá-lo. Do importantíssimo trabalho do Idries Shah. Ele não me disse se conhecia o trabalho do Idries Shah mas respondeu-me algo assim:

- Conheço o sufimo por serendipity. Há qualquer cousa extraódinaria no sufismo, o exemplo de uma atitude aberta e integradora, de grande sabedoria num contexto fortemente fanático. Eles são os autênticos cristãos no meio do dogmatismo muçulmano.

A resposta tinha mais matizes e era mais interessante mas destilava um não dissimulado despreço perante o mundo muçulmano. Recordei então como nas nossas conversas de anos atrás ele tinha feito críticas á figura de Muhammad. Eu mesmo aceitara aquelas críticas pois era eu um jovem anti-religioso e desconhecia tudo sobre o Islão. Mas agora era diferente. Não fui capaz de me ressistir a lhe responder ironicamente, um pouco no seu próprio estilo:

- Ainda bem que ficam cristãos entre os muçulmanos por que entre os cristãos temos que reconhecer que é impossível encontrá-los.

Conto isto porque é surpreendente a lavagem de cérebro que a cultura ocidental chegou a fazer sobre o mundo islâmico e a sua influência, borrando a memória da sua aportação. Há um chauvinismo, um orgulho sem sentido na classe intelectual ocidental. Há pouco ouvi dizer a um intelectual inteligente e estimável em muitos aspectos que ele proibiria o Corão. O que me parece horroroso é o grau de ignorância que isso supõe. Os intelectuais que se autroproclamam laicos e progressistas estão indefesos perante o fanatismo que pretendem combater: eles estão reagindo, simplesmente. Não há qualquer posição ativa. Neste sentido o ateismo de Nietzsche é imcompreensível  para eles. Seria um ateísmo com o que um sufi poderia tratar. Aqui acontece o que na Idade Meia: os que antes eram teólogos que condenavam a um Ibn Arabi são agora intelectuais e cientistas positivos que adotam posturas similares perante o que está muito além de eles. E o grave é que isto é sintomático da degradação intelectual e cultural de Europa. É precisso dizer: cultivem-se realmente, aprendam, percam esse orgulho e, aceitem, socraticamente, que realmente não sabem. Não importa quantas enciclopédias levem acima, inclinem-se alguma vez na vida perante o grande mistério. Sintam o coração e tirem as suas gravatas e trajos  mentais.

A outra história é do meu avô. Era a a Guerra civil espanhola e ele estava no bando de Franco. Ali tinha feito amizade com um marroquino chamado Ahmed. Mas aqui não quero tratar a questão política. Eles estabeleceram uma cumplicidade, um tipo de amizade especial. Ás vezes rezavam juntos, cada um na sua confissão. Um com o tasbi, outro com o rosário. Meu avó era afeiçoado á fotografia, de fato era um artista e um muito bom pintor também. Um dia Ahmed acercou-se a ele e disse-lhe que voltava uns dias á sua  aldeia, visitar a sua família, precisaria ele algo, queria que lhe trouxesse alguma cousa?. Meu avô disse-lhe que se por acaso passava por Ceuta ou Melilha seria tão amável de trazer-lhe umas placas fotográficas? Mas só se coincidia.
Quando Ahmed estava de volta tinha as placas fotográficas para o meu avô. Tudo bem, parecia.
Mas o meu avô observou nos dias posteriores uma estranha atitude dos outros marroquinos para com Ahmed. Tentou averiguar que acontecia e descobriu que os outros mouros estavam a ridiculizar a Ahmed pelo que consideravam uma mostra de servilismo perante o meu avô, pois Ahmed tinha andado oitenta km. para lhe conseguir as placas. 
Meu avó foi falar com ele:
- Ahmed, como fizeste oitenta km para me conseguir as placas? Não era necessário. Era só se te coincidia passar
Ahmed respondeu:
- Não faças como eles, eles não sabem. Mas tu...Pensei que fosses um irmão na fe. Deixa-o. Esta é uma questão entre Deus e mim. Esquece-o.

A lição chegou até mim quase cinquenta anos depois de que acontecesse, de jeito que os oitenta km de Ahmed tiveram, depois de tudo, a sua razão de ser. Porque a lição continua...

segunda-feira, 2 de março de 2015

O último rei de Portugal





I

Estava para me mudar da Avenida D. Sebastião, na Costa da Caparica, para a cidade de Lisboa. Tinha procurado na Faculdade vários telefones de aluguer de quartos e tinha realizado algumas chamadas. Ainda ficavam dous por contatar. Aquele dia perdi-me pela cidade como baralhando as diferentes possibilidades que tinha por diante. Como escolher o lugar certo?, como seriam as novas pessoas com as que viveria? As perguntas davam voltas insistentemente e eu devia tomar uma decisão já.
Desde o castelo de S. Jorge olhava a cidade, pensativo. O antigo castelo árabe era um lugar no que costumava passear. Em aquela época era de entrada livre e muitas vezes pensava que ali estivera a viver Joana a Beltraneja, a Excelente Senhora como era conhecida dos portugueses. Joana foi a rainha legítima de Castela cujo trono foi usurpado por Isabel a Católica. Era sobrinha de Isabel e é uma história onde a razão de estado se impus pelo gênio maquiavélico (há que reconhecer que tinha talento) de Fernando. Os nobres galegos que apoiaram a Joana foram “borrados do mapa” e Isabel morreu com grandes sentimentos de culpa com respeito a Joana. Ainda no século XIX e XX foram destruídos documentos comprometedores da história oficial que confirmavam a legitimidade de Joana. Mas eu devia fazer um telefonema para escolher quarto. Onde moraria?
Foi então que ouvi o nome de Egas Moniz. Dous homens passeavam e um disse em voz alta o nome de Egas Moniz. Foi o único que ouvi mas foi suficiente para me dar uma pista. De algum jeito senti que tinha que telefonar para perguntar por um quarto que ficava perto do metro de Martim Moniz. Hoje sei que não há qualquer vínculo entre Martim Moniz e Egas Moniz mas pode que na altura eu precisasse uma mínima indicação para me decidir. Senti que eu ia morar perto de Martim Moniz e assim foi.
Passei a morar nas Escadinhas da Saúde, um nome irónico, pois o número de escadas que um tinha que subir em aquela rua era imenso, e tendo em conta que morava num quarto andar de uma casa antiga sem elevador, na verdade, ou te convertias num atleta de fundo ou não dormias na casa...
Lorcan era um irlandês com o que simpatizei imediatamente. De um jeito indefinível mas muito evidente para mim havia certo parecido entre nós. Mas pode que não fosse capaz de especificar em que, se alguém me perguntasse. Era uma sensação interna. Lorcan acedeu imediatamente a me alugar um quarto. A nossa conexão celta, eu deixei clara a minha galeguidade, foi o “detalhe” que selou o nosso contrato, verbal, of course.
Eu costumava ir desde a Mouraria até S. Pedro de Alcântara. Desde o miradouro eu via o Castelo de S. Jorge sobre a cidade com um grande cartaz pendurado, dia trás dia, sempre a mesma frase:

Os mouros voltaram a trabalhar.

Começaram os trabalhos de restauração do Castelo de São Jorge e não podia deixar de sorrir cada vez que via aquela frase anunciada ao mundo. Quem estava detrás de aquela frase? Enfim...eu continuava até a praça do Príncipe Real onde um magnífico cedro de Buçaco a presidia, embora começasse a mostrar os primeiros signos de doença. Ali fazia uma paragem durante um tempo antes de me adentrar no Real Jardim Botânico á beira da faculdade de Química. Muitas vezes fazia isto mas cada dia era diferente... e um bom dia, enquanto bebia um café com leite no miradouro de Santa Catarina, o miradouro do Adamastor, ouvi uma conversa:
- O Egas Moniz era uma besta!. Grande honra para os portugueses que lhe deram o Nobel! Ainda não o deram a um poeta mas a uma besta deram-lhe o Nobel e... de medicina.!
Um homem corpulento de bigodes amplos, que lembravam um Kaiser, riu abertamente e sem complexos, porém não fez comentário algum. Era o doutor Castro e uns minutos mais tarde eu estava a conversar com eles explicando a minha curiosidade por saber quem era Egas Moniz.
 O doutor Castro era de origem galega e explicou-me que ele tinha estudado com Egas Moniz, quem foi pioneiro na técnica da lobotomia para certas psicoses. Fiquei perplexo. Mas o doutor Castro assegurou-me que ele nunca concordara com essa técnica, nem com toda a medicina positivista tão em boga. Trabalhara com Egaz Moniz sendo muito novo por recomendação do seu pai, um médico galego refugiado da ditadura franquista, mas ele era um psiquiatra da escola humanista. Conhecera pessoalmente Rof Carvalho e fora um dos primeiros introdutores do pensamento de Carl Gustav Jung em Portugal, a quem conheceu num dos encontros Eranos em Ascona. Certamente ele era um homem que transmitia uma sensação de confiança e familiaridade. Um não tinha a impressão de estar perante alguém que tentasse transmitir uma imagem determinada. O seu amigo era o advogado Daniel Sarmento, poeta e escritor em vários jornais lisboetas, um homem irónico e brincalhão. Falamos durante horas e ainda me encontrei com o doutor Castro em três ocasiões antes de deixar Lisboa.
Quando nos despedíamos aquela tarde, o doutor Castro virou-se para mim, que já ia algo longe, e disse em voz grave e sussurrante:
- Há outro Egas Moniz! O aio de Afonso Henriques.-  E já não voltei a vê-lo até passada uma semana.


II

Ofélia, na altura minha namorada, ia-me visitar no meu novo domicílio durante a Páscoa. Eu estava um pouco incômodo porque o quarto não reunia umas condições ótimas. Aliás, a cama era estreita demais mesmo para uma pessoa delgada como eu. Que dizer de duas! Tinha uma tábua rota que fazia um rangido queixoso e lamentável, de jeito que eu não me mexia lá com muita esperteza. E estas eram as minhas metafísicas preocupações! Mas que podia fazer!.
Um dia desci ao café dos alfarrabistas, um lugar de fumo e cigarros, de homem idosos que contavam milheiros de histórias sobre a maneira em que conseguiram edições estranhas. Conheciam ao doutor Castro, um cliente habitual e um bibliófilo reconhecido. Pouco depois chegava o doutor, quem me tinha citado lá. Foi ele o que me apresentou alguns dos velhos alfarrabistas do café.
- Quero mostrar-lhe algo que me trouxe o meu amigo Fernando- e olhou para o alfarrabista mais velho, de quase noventa anos, de um olhar inteligente e uns impressionantes e vivos olhos verdes. Pode que goste – continuou -  pois tem certos interesses no assunto.- E tirou então várias revistas que se intitulavam:


Dicionário das literaturas portuguesa, galega e brasileira.
Direcção de Jacinto do Prado Coelho

Fiquei surpreso pois desconhecia essa tentativa de unificação, aliás nunca tinha ouvido falar dela na Galiza. Suponho que o nacionalismo galego acharia uma estranha manobra de assimilação lisboeta. Enfim, sempre tinha sentido uma certa irritação com os nacionalistas e agora sentia que a ideia de que em Portugal não se fazia nada pela Galiza não só não era justa mas aqui havia uma mostra de todo o contrário. Incluir á Galiza em pé de igualdade com Brasil e Portugal era mais que justo: era francamente generoso!
- Podia explicar-me como via o relacionamento entre galegos e portugueses, perguntei, porque era um tema que me tinha interessado desde muitos anos atrás e não alcançava a compreender esta fonte de pesquisa sociológica ilimitada.
- Posso e quero! – disse Castro -. Basicamente é um relacionamento complexado por parte da Galiza e dos galegos. Os posicionamentos extremistas querem desfazer-se sempre das responsabilidades e do lugar histórico que lhe corresponde com todas as consequências. Os galegos não podem simplesmente optar por uma parte da história em detrimento da outra. Têm que assumir ambas e levar ambas até as últimas consequências. Os galegos que têm uma forte afinidade com Portugal sempre o fazem renunciando á sua espanholidade e isto é um complexo, uma falta de maturidade histórica. Têm que tomar e dar em ambas vertentes. Então os portugueses tomariam a sério aos galegos, pois, no fundo, os portugueses gostam dos espanhóis, retóricas a um lado, e a razão é que há uma certa complementariedade entre o espanhol e o português. Não se fiam dos que mostram ressentimento, esse é o problema. E esta é a frustração dos nacionalistas galegos de diverso tipo com Portugal. De modo geral o português não gosta do nacionalismo espanhol mas tampouco do nacionalismo galego.  E os galegos deveriam tomar a responsabilidade, com lealdade para com Espanha e Portugal, de ser o lugar de uma autêntica reconciliação histórica mas sem exigências de curta política. Não há nada que impeça aos galegos fazer isso. Só os próprios complexos. E falo como galego!
- E os que afirmam a Espanha e negam a Galiza? – gaguejei.
- São pessoas que se avergonham do que são. Buscam sempre realizar-se no mundo das aparências. Carecem de presença.
- Afirmar a Galiza implica também tomar de Portugal?
- Portugal e Galiza formam um Símbolo, simbolizam um com o outro. Pode que haja um erro histórico na maneira em que Afonso Henriques lutou contra a sua mãe. Mas o que foi já foi...
- Ás vezes parece que certos problemas se estendem no tempo, repetindo-se de diferente jeito, com diferentes máscaras.
O Doutor Castro sorriu e, de súbito, mudou de tom, parecia mais tranquilo. A sua voz grave e pausada e os seus olhos bondosos expressavam paz interior.
- Trata-se de metáforas mais ou menos afortunadas. Há um impulso nobre, isso devemos seguir. As pessoas evoluímos a partir de algum tipo de molde, depois o molde é preciso rompê-lo. Temos que crescer - e respirou profundamente- . O resto é só literatura.
Levei as revistas comigo. Lorcan estava á minha espera. Explicou-me que a vizinha queria falar comigo já que estava a fazer uma mudança de mobiliário.  Chamei á sua porta e uma velha encantadora saiu ao meu encontro:
- Meu filho, es espanhol?
- Sim. Enfim, mais exatamente galego.
-Ah, galego, que bom. Meu chefe era galego, um médico tão generoso! Conheço a Rosalia de Castro, a Curros Henriques, ele gostava de lê-los aos seus pacientes. Há tantos galegos em Lisboa! Mas a questão é: queres uma cama de casal!
- Como?
- Tenho que me desfazer da minha cama de casal e antes de atirá-la quero saber se alguém a precisa.

- Na verdade sim, eu preciso.
- Pois está feito.

E assim foi que a cama de casal de esta encantadora mulher chegou ao meu quarto em Escadinhas da Saúde.

 III           
       
O consultório do Dr. Castro ficava na Rua do Jasmim, uma casa antiga com azulejos já gastos mas que oferecia um sensação de intimidade e acolhimento. A casa estava recoberta por livros que segundo Castro atuavam como um bom isolamento para os ruídos do exterior. Assim os pacientes podiam sentir calma e proteção, algo muito agradecido com aquelas pessoas que chegavam a ele, ás vezes, com importantes perturbações psíquicas. Que a sua casa fosse uma imensa biblioteca, labiríntica, cheia de volumes, alguns antiquíssimos era também um símbolo da nossa mente.
- Pode pensar que todo o conhecimento necessário para desenvolver uma vida sábia está aqui mas... por onde começar?- começou a falar Castro. Eis a questão. Se não tiver uma guia pode ficar pior do que não sabendo nada. Muitos dos pacientes que recebo são pessoas muito desenvolvidas intelectualmente mas, ao mesmo tempo, têm uma terrível confusão. De algum jeito a biblioteca é um lugar de recepção que confirma a minha validez para todos eles. Isto permite que eles estabeleçam o ligame de confiança necessário. Evidentemente eu quase nunca falo de questões intelectuais com eles. A biblioteca é o contexto.
Também havia um jardim. Ninguém poderia imaginá-lo desde a rua. Era um estilo de pequeno jardim inglês interior. Havia um cuidado lá que parecia completamente casual. Mesmo o descuido parecia obedecer á alguma intenção. Podiam ver-se também algumas esculturas, desenhos geométricos, alguns a meio fazer. O tempo morno daquela tarde fazia agradável a nossa conversa enquanto bebíamos um chá. Queria conhecer algo sobre a experiência profissional e numa certa altura perguntei qual era a sua perspectiva sobre a cura. Como entendia a psicoterapia? Houve um longo silêncio do Dr. Castro. E começou a falar:
- Não podemos responder com palavras ao que perguntamos com palavras mas ficar calado também não adiantaria muito – e rimos ambos pelo jeito humorado em que o disse. Contarei um conto, que acho que pode dar luz de um jeito direto e indireto a um tempo.
- Houve uma vez um justo e generoso rei que tinha três formosas filhas, luz e alegria  dos seus olhos. Um bom dia ele fez uma estranha declaração:
“Tudo quanto possuo é vosso ou o será algum dia. Sou a causa da vossa existência, sinto a responsabilidade da vossa felicidade ou da vossa desgraça, o vosso destino depende inteiramente das minhas decisões. Muitas vezes pensei que seria diferente se fósseis varões mas é consubstancial á alma feminina  esta dependência e quero que saibais que não me pesa este fato pois a vossa doçura me compraz e sou e serei sempre feliz na vossa companhia”
Duas das filhas ficaram satisfeitas com esta declaração mas a terceira dissentiu:
- Querido pai, sabeis da minha obediência e do amor que vos professo mas não posso ficar em silêncio perante semelhante incoerência, que atentaria contra as leis proporcionadas pelo Criador. Perdoai-me, senhor, mas não posso aceitar que o meu destino dependa de uma decisão humana, mesmo que tenha a grandeza e o selo do meu pai, o rei.
- Isso já se verá -  disse o rei, que atacado no seu orgulho  mandou encarcerar á sua própria filha durante anos.  De vez em quando ia visita-la e dizia:
- Continuas a pensar que es tu quem decide o teu destino e não o teu pai, o rei?  Mas ela nem lhe respondia.
Um bom dia a paciência do rei esgotou-se e decidiu libertar á princesa num infame deserto próximo ao seu reino, onde todo tipo de animais selvagens e seres excêntricos mal-viviam. Deixá-la no cárcere começava a pesar-lhe, o próprio povo começava a murmurar. Pô-la no deserto era um jeito de obrigá-la a pedir ajuda, de voltar-se para o seu próprio reino, de reconhecer a necessidade da sua família. Ali não teria o alimento que lhe levavam tranquilamente na cadeia.
A princesa pensou enlouquecer ao principio. Cantava canções  e murmurava estranhas palavras. Parecia uma indigente, uma mulher muito mais velha, uma espécie de bruxa. Realmente quase não parecia humana mas a pouco e pouco foi encontrando uma cova onde dormir, num pequeno oásis encontrou agua e tâmaras. A que outrora foi princesa real era agora uma camponesa selvagem mas gozosa e viva. Na chegada do verão tinha feito uma casa, obtinha frutos e muitos animais a conheciam e respeitavam. Ela pensou que, com certeza, nada disso era controlado pelo seu pai.
Um dia apareceu um ginete, um homem de grande riqueza e inteligência, que ao ver a semelhante ser percebeu algo mais que uma simples camponesa. Havia uma presença real na sua dição, nos seus gestos. O coração do ginete ficou apaixonado e começaram um idílio. A princesa apaixonou-se da sua nobreza e da sua percepção.
Em breve tempo o que outrora tinha sido um deserto, era agora uma  próspera cidade. Muitas pessoas e seres excêntricos se integraram perfeitamente. Os que eram considerados inúteis na cidade ali eram grandes artistas, poetas ou grandes artesãos. Havia músicos, pintores e cientistas. Todos decidiram que a princesa e o seu esposo fossem os reis de aquele singular país.
A fama chegou a ao reino do pai, quem curioso de ver o que ali se passava decidiu ir em comitiva, a presentar os seus cumprimentos aos novos reis de tão maravilhosa nação de paz e justiça que tinha surgido aos pés do seu próprio reino.
Quase arrastando-se até o trono dos novos reis o velho rei pôde ouvir como num longo sussurro as palavras pronunciadas pela sua própria filha:
- Podes ver, Pai, que cada homem e cada mulher tem o seu próprio destino e a sua própria eleição.”

Durante um tempo ficamos em silêncio e senti que não tinha nenhuma pergunta a fazer. Em certo modo a minha “consulta” com o Doutor Castro tinha chegado ao seu fim.

Quando cheguei á Escadinhas da Saúde encontrei a Lorcan na entrada do portal.

- Acabo de estar com o dono do prédio para pagar-lhe a mensalidade. Sabes o que ele me disse?
- O que?
- Pois que estamos a morar onde viveu o  que matou ao último rei de Portugal!
Fiquei sentado nas escadas durante um tempo. Que sentido tinha tudo aquilo?