sábado, 23 de maio de 2015

Duas lembranças pessoais: sobre os muçulmanos.

Quando ainda era um estudante conheci um sociólogo valenciano que foi durante muitos anos professor de sociolingüística na Universidade de Barcelona. Um homem brillhante, extraordinariamente inteligente.  Falava muitas línguas, admirador da cultura anglosaxónica, conhecedor das histórias mais surpreendentes e estranhas da cultura europeia, era ademais  um grande admirador do mundo latino. O seu sentido crítico era agudo e tinha viajado por muitos paises do mundo. A primeira vez que o conheci lembro que foi na casa de um amigo, na Corunha. Estivemos a conversar umas duas horas e depois descimos á rua para dar um passeio. Nunca o disse a ninguém mas houve um instante em que senti um forte e intenso "amor"de jeito que tive que conter-me para não dar-lhe um abraço diante da sua esposa num momento em que estávamos a falar na rua. Eu teria uns 20 ou 21 anos e  era a primeira pessoa na minha vida que me tinha tocado de aquele jeito. Era assombrosa a sua capacidade de jogar com os paradoxos, de questionar os lugares comuns. Eu conectava com uma inteligência, que me deleitava. Não se tratava só da erudição, que era imensa, mas do jeito tão fora do comum de estabelecer relações e a maneira humorada de o fazer. Ele moveu em mim algo que descolocou tudo o que eu sabia até então. Passaram os anos  e eu fiz a minha própria evolução. Perdimos o contato durante muito tempo até que um dia o recuperamos via internet. Falei-lhe de tudo o que me tinha acontecido e numa altura falei-lhe do sufismo, do importante que tinha sido encontrá-lo. Do importantíssimo trabalho do Idries Shah. Ele não me disse se conhecia o trabalho do Idries Shah mas respondeu-me algo assim:

- Conheço o sufimo por serendipity. Há qualquer cousa extraódinaria no sufismo, o exemplo de uma atitude aberta e integradora, de grande sabedoria num contexto fortemente fanático. Eles são os autênticos cristãos no meio do dogmatismo muçulmano.

A resposta tinha mais matizes e era mais interessante mas destilava um não dissimulado despreço perante o mundo muçulmano. Recordei então como nas nossas conversas de anos atrás ele tinha feito críticas á figura de Muhammad. Eu mesmo aceitara aquelas críticas pois era eu um jovem anti-religioso e desconhecia tudo sobre o Islão. Mas agora era diferente. Não fui capaz de me ressistir a lhe responder ironicamente, um pouco no seu próprio estilo:

- Ainda bem que ficam cristãos entre os muçulmanos por que entre os cristãos temos que reconhecer que é impossível encontrá-los.

Conto isto porque é surpreendente a lavagem de cérebro que a cultura ocidental chegou a fazer sobre o mundo islâmico e a sua influência, borrando a memória da sua aportação. Há um chauvinismo, um orgulho sem sentido na classe intelectual ocidental. Há pouco ouvi dizer a um intelectual inteligente e estimável em muitos aspectos que ele proibiria o Corão. O que me parece horroroso é o grau de ignorância que isso supõe. Os intelectuais que se autroproclamam laicos e progressistas estão indefesos perante o fanatismo que pretendem combater: eles estão reagindo, simplesmente. Não há qualquer posição ativa. Neste sentido o ateismo de Nietzsche é imcompreensível  para eles. Seria um ateísmo com o que um sufi poderia tratar. Aqui acontece o que na Idade Meia: os que antes eram teólogos que condenavam a um Ibn Arabi são agora intelectuais e cientistas positivos que adotam posturas similares perante o que está muito além de eles. E o grave é que isto é sintomático da degradação intelectual e cultural de Europa. É precisso dizer: cultivem-se realmente, aprendam, percam esse orgulho e, aceitem, socraticamente, que realmente não sabem. Não importa quantas enciclopédias levem acima, inclinem-se alguma vez na vida perante o grande mistério. Sintam o coração e tirem as suas gravatas e trajos  mentais.

A outra história é do meu avô. Era a a Guerra civil espanhola e ele estava no bando de Franco. Ali tinha feito amizade com um marroquino chamado Ahmed. Mas aqui não quero tratar a questão política. Eles estabeleceram uma cumplicidade, um tipo de amizade especial. Ás vezes rezavam juntos, cada um na sua confissão. Um com o tasbi, outro com o rosário. Meu avó era afeiçoado á fotografia, de fato era um artista e um muito bom pintor também. Um dia Ahmed acercou-se a ele e disse-lhe que voltava uns dias á sua  aldeia, visitar a sua família, precisaria ele algo, queria que lhe trouxesse alguma cousa?. Meu avô disse-lhe que se por acaso passava por Ceuta ou Melilha seria tão amável de trazer-lhe umas placas fotográficas? Mas só se coincidia.
Quando Ahmed estava de volta tinha as placas fotográficas para o meu avô. Tudo bem, parecia.
Mas o meu avô observou nos dias posteriores uma estranha atitude dos outros marroquinos para com Ahmed. Tentou averiguar que acontecia e descobriu que os outros mouros estavam a ridiculizar a Ahmed pelo que consideravam uma mostra de servilismo perante o meu avô, pois Ahmed tinha andado oitenta km. para lhe conseguir as placas. 
Meu avó foi falar com ele:
- Ahmed, como fizeste oitenta km para me conseguir as placas? Não era necessário. Era só se te coincidia passar
Ahmed respondeu:
- Não faças como eles, eles não sabem. Mas tu...Pensei que fosses um irmão na fe. Deixa-o. Esta é uma questão entre Deus e mim. Esquece-o.

A lição chegou até mim quase cinquenta anos depois de que acontecesse, de jeito que os oitenta km de Ahmed tiveram, depois de tudo, a sua razão de ser. Porque a lição continua...