segunda-feira, 2 de março de 2015

O último rei de Portugal





I

Estava para me mudar da Avenida D. Sebastião, na Costa da Caparica, para a cidade de Lisboa. Tinha procurado na Faculdade vários telefones de aluguer de quartos e tinha realizado algumas chamadas. Ainda ficavam dous por contatar. Aquele dia perdi-me pela cidade como baralhando as diferentes possibilidades que tinha por diante. Como escolher o lugar certo?, como seriam as novas pessoas com as que viveria? As perguntas davam voltas insistentemente e eu devia tomar uma decisão já.
Desde o castelo de S. Jorge olhava a cidade, pensativo. O antigo castelo árabe era um lugar no que costumava passear. Em aquela época era de entrada livre e muitas vezes pensava que ali estivera a viver Joana a Beltraneja, a Excelente Senhora como era conhecida dos portugueses. Joana foi a rainha legítima de Castela cujo trono foi usurpado por Isabel a Católica. Era sobrinha de Isabel e é uma história onde a razão de estado se impus pelo gênio maquiavélico (há que reconhecer que tinha talento) de Fernando. Os nobres galegos que apoiaram a Joana foram “borrados do mapa” e Isabel morreu com grandes sentimentos de culpa com respeito a Joana. Ainda no século XIX e XX foram destruídos documentos comprometedores da história oficial que confirmavam a legitimidade de Joana. Mas eu devia fazer um telefonema para escolher quarto. Onde moraria?
Foi então que ouvi o nome de Egas Moniz. Dous homens passeavam e um disse em voz alta o nome de Egas Moniz. Foi o único que ouvi mas foi suficiente para me dar uma pista. De algum jeito senti que tinha que telefonar para perguntar por um quarto que ficava perto do metro de Martim Moniz. Hoje sei que não há qualquer vínculo entre Martim Moniz e Egas Moniz mas pode que na altura eu precisasse uma mínima indicação para me decidir. Senti que eu ia morar perto de Martim Moniz e assim foi.
Passei a morar nas Escadinhas da Saúde, um nome irónico, pois o número de escadas que um tinha que subir em aquela rua era imenso, e tendo em conta que morava num quarto andar de uma casa antiga sem elevador, na verdade, ou te convertias num atleta de fundo ou não dormias na casa...
Lorcan era um irlandês com o que simpatizei imediatamente. De um jeito indefinível mas muito evidente para mim havia certo parecido entre nós. Mas pode que não fosse capaz de especificar em que, se alguém me perguntasse. Era uma sensação interna. Lorcan acedeu imediatamente a me alugar um quarto. A nossa conexão celta, eu deixei clara a minha galeguidade, foi o “detalhe” que selou o nosso contrato, verbal, of course.
Eu costumava ir desde a Mouraria até S. Pedro de Alcântara. Desde o miradouro eu via o Castelo de S. Jorge sobre a cidade com um grande cartaz pendurado, dia trás dia, sempre a mesma frase:

Os mouros voltaram a trabalhar.

Começaram os trabalhos de restauração do Castelo de São Jorge e não podia deixar de sorrir cada vez que via aquela frase anunciada ao mundo. Quem estava detrás de aquela frase? Enfim...eu continuava até a praça do Príncipe Real onde um magnífico cedro de Buçaco a presidia, embora começasse a mostrar os primeiros signos de doença. Ali fazia uma paragem durante um tempo antes de me adentrar no Real Jardim Botânico á beira da faculdade de Química. Muitas vezes fazia isto mas cada dia era diferente... e um bom dia, enquanto bebia um café com leite no miradouro de Santa Catarina, o miradouro do Adamastor, ouvi uma conversa:
- O Egas Moniz era uma besta!. Grande honra para os portugueses que lhe deram o Nobel! Ainda não o deram a um poeta mas a uma besta deram-lhe o Nobel e... de medicina.!
Um homem corpulento de bigodes amplos, que lembravam um Kaiser, riu abertamente e sem complexos, porém não fez comentário algum. Era o doutor Castro e uns minutos mais tarde eu estava a conversar com eles explicando a minha curiosidade por saber quem era Egas Moniz.
 O doutor Castro era de origem galega e explicou-me que ele tinha estudado com Egas Moniz, quem foi pioneiro na técnica da lobotomia para certas psicoses. Fiquei perplexo. Mas o doutor Castro assegurou-me que ele nunca concordara com essa técnica, nem com toda a medicina positivista tão em boga. Trabalhara com Egaz Moniz sendo muito novo por recomendação do seu pai, um médico galego refugiado da ditadura franquista, mas ele era um psiquiatra da escola humanista. Conhecera pessoalmente Rof Carvalho e fora um dos primeiros introdutores do pensamento de Carl Gustav Jung em Portugal, a quem conheceu num dos encontros Eranos em Ascona. Certamente ele era um homem que transmitia uma sensação de confiança e familiaridade. Um não tinha a impressão de estar perante alguém que tentasse transmitir uma imagem determinada. O seu amigo era o advogado Daniel Sarmento, poeta e escritor em vários jornais lisboetas, um homem irónico e brincalhão. Falamos durante horas e ainda me encontrei com o doutor Castro em três ocasiões antes de deixar Lisboa.
Quando nos despedíamos aquela tarde, o doutor Castro virou-se para mim, que já ia algo longe, e disse em voz grave e sussurrante:
- Há outro Egas Moniz! O aio de Afonso Henriques.-  E já não voltei a vê-lo até passada uma semana.


II

Ofélia, na altura minha namorada, ia-me visitar no meu novo domicílio durante a Páscoa. Eu estava um pouco incômodo porque o quarto não reunia umas condições ótimas. Aliás, a cama era estreita demais mesmo para uma pessoa delgada como eu. Que dizer de duas! Tinha uma tábua rota que fazia um rangido queixoso e lamentável, de jeito que eu não me mexia lá com muita esperteza. E estas eram as minhas metafísicas preocupações! Mas que podia fazer!.
Um dia desci ao café dos alfarrabistas, um lugar de fumo e cigarros, de homem idosos que contavam milheiros de histórias sobre a maneira em que conseguiram edições estranhas. Conheciam ao doutor Castro, um cliente habitual e um bibliófilo reconhecido. Pouco depois chegava o doutor, quem me tinha citado lá. Foi ele o que me apresentou alguns dos velhos alfarrabistas do café.
- Quero mostrar-lhe algo que me trouxe o meu amigo Fernando- e olhou para o alfarrabista mais velho, de quase noventa anos, de um olhar inteligente e uns impressionantes e vivos olhos verdes. Pode que goste – continuou -  pois tem certos interesses no assunto.- E tirou então várias revistas que se intitulavam:


Dicionário das literaturas portuguesa, galega e brasileira.
Direcção de Jacinto do Prado Coelho

Fiquei surpreso pois desconhecia essa tentativa de unificação, aliás nunca tinha ouvido falar dela na Galiza. Suponho que o nacionalismo galego acharia uma estranha manobra de assimilação lisboeta. Enfim, sempre tinha sentido uma certa irritação com os nacionalistas e agora sentia que a ideia de que em Portugal não se fazia nada pela Galiza não só não era justa mas aqui havia uma mostra de todo o contrário. Incluir á Galiza em pé de igualdade com Brasil e Portugal era mais que justo: era francamente generoso!
- Podia explicar-me como via o relacionamento entre galegos e portugueses, perguntei, porque era um tema que me tinha interessado desde muitos anos atrás e não alcançava a compreender esta fonte de pesquisa sociológica ilimitada.
- Posso e quero! – disse Castro -. Basicamente é um relacionamento complexado por parte da Galiza e dos galegos. Os posicionamentos extremistas querem desfazer-se sempre das responsabilidades e do lugar histórico que lhe corresponde com todas as consequências. Os galegos não podem simplesmente optar por uma parte da história em detrimento da outra. Têm que assumir ambas e levar ambas até as últimas consequências. Os galegos que têm uma forte afinidade com Portugal sempre o fazem renunciando á sua espanholidade e isto é um complexo, uma falta de maturidade histórica. Têm que tomar e dar em ambas vertentes. Então os portugueses tomariam a sério aos galegos, pois, no fundo, os portugueses gostam dos espanhóis, retóricas a um lado, e a razão é que há uma certa complementariedade entre o espanhol e o português. Não se fiam dos que mostram ressentimento, esse é o problema. E esta é a frustração dos nacionalistas galegos de diverso tipo com Portugal. De modo geral o português não gosta do nacionalismo espanhol mas tampouco do nacionalismo galego.  E os galegos deveriam tomar a responsabilidade, com lealdade para com Espanha e Portugal, de ser o lugar de uma autêntica reconciliação histórica mas sem exigências de curta política. Não há nada que impeça aos galegos fazer isso. Só os próprios complexos. E falo como galego!
- E os que afirmam a Espanha e negam a Galiza? – gaguejei.
- São pessoas que se avergonham do que são. Buscam sempre realizar-se no mundo das aparências. Carecem de presença.
- Afirmar a Galiza implica também tomar de Portugal?
- Portugal e Galiza formam um Símbolo, simbolizam um com o outro. Pode que haja um erro histórico na maneira em que Afonso Henriques lutou contra a sua mãe. Mas o que foi já foi...
- Ás vezes parece que certos problemas se estendem no tempo, repetindo-se de diferente jeito, com diferentes máscaras.
O Doutor Castro sorriu e, de súbito, mudou de tom, parecia mais tranquilo. A sua voz grave e pausada e os seus olhos bondosos expressavam paz interior.
- Trata-se de metáforas mais ou menos afortunadas. Há um impulso nobre, isso devemos seguir. As pessoas evoluímos a partir de algum tipo de molde, depois o molde é preciso rompê-lo. Temos que crescer - e respirou profundamente- . O resto é só literatura.
Levei as revistas comigo. Lorcan estava á minha espera. Explicou-me que a vizinha queria falar comigo já que estava a fazer uma mudança de mobiliário.  Chamei á sua porta e uma velha encantadora saiu ao meu encontro:
- Meu filho, es espanhol?
- Sim. Enfim, mais exatamente galego.
-Ah, galego, que bom. Meu chefe era galego, um médico tão generoso! Conheço a Rosalia de Castro, a Curros Henriques, ele gostava de lê-los aos seus pacientes. Há tantos galegos em Lisboa! Mas a questão é: queres uma cama de casal!
- Como?
- Tenho que me desfazer da minha cama de casal e antes de atirá-la quero saber se alguém a precisa.

- Na verdade sim, eu preciso.
- Pois está feito.

E assim foi que a cama de casal de esta encantadora mulher chegou ao meu quarto em Escadinhas da Saúde.

 III           
       
O consultório do Dr. Castro ficava na Rua do Jasmim, uma casa antiga com azulejos já gastos mas que oferecia um sensação de intimidade e acolhimento. A casa estava recoberta por livros que segundo Castro atuavam como um bom isolamento para os ruídos do exterior. Assim os pacientes podiam sentir calma e proteção, algo muito agradecido com aquelas pessoas que chegavam a ele, ás vezes, com importantes perturbações psíquicas. Que a sua casa fosse uma imensa biblioteca, labiríntica, cheia de volumes, alguns antiquíssimos era também um símbolo da nossa mente.
- Pode pensar que todo o conhecimento necessário para desenvolver uma vida sábia está aqui mas... por onde começar?- começou a falar Castro. Eis a questão. Se não tiver uma guia pode ficar pior do que não sabendo nada. Muitos dos pacientes que recebo são pessoas muito desenvolvidas intelectualmente mas, ao mesmo tempo, têm uma terrível confusão. De algum jeito a biblioteca é um lugar de recepção que confirma a minha validez para todos eles. Isto permite que eles estabeleçam o ligame de confiança necessário. Evidentemente eu quase nunca falo de questões intelectuais com eles. A biblioteca é o contexto.
Também havia um jardim. Ninguém poderia imaginá-lo desde a rua. Era um estilo de pequeno jardim inglês interior. Havia um cuidado lá que parecia completamente casual. Mesmo o descuido parecia obedecer á alguma intenção. Podiam ver-se também algumas esculturas, desenhos geométricos, alguns a meio fazer. O tempo morno daquela tarde fazia agradável a nossa conversa enquanto bebíamos um chá. Queria conhecer algo sobre a experiência profissional e numa certa altura perguntei qual era a sua perspectiva sobre a cura. Como entendia a psicoterapia? Houve um longo silêncio do Dr. Castro. E começou a falar:
- Não podemos responder com palavras ao que perguntamos com palavras mas ficar calado também não adiantaria muito – e rimos ambos pelo jeito humorado em que o disse. Contarei um conto, que acho que pode dar luz de um jeito direto e indireto a um tempo.
- Houve uma vez um justo e generoso rei que tinha três formosas filhas, luz e alegria  dos seus olhos. Um bom dia ele fez uma estranha declaração:
“Tudo quanto possuo é vosso ou o será algum dia. Sou a causa da vossa existência, sinto a responsabilidade da vossa felicidade ou da vossa desgraça, o vosso destino depende inteiramente das minhas decisões. Muitas vezes pensei que seria diferente se fósseis varões mas é consubstancial á alma feminina  esta dependência e quero que saibais que não me pesa este fato pois a vossa doçura me compraz e sou e serei sempre feliz na vossa companhia”
Duas das filhas ficaram satisfeitas com esta declaração mas a terceira dissentiu:
- Querido pai, sabeis da minha obediência e do amor que vos professo mas não posso ficar em silêncio perante semelhante incoerência, que atentaria contra as leis proporcionadas pelo Criador. Perdoai-me, senhor, mas não posso aceitar que o meu destino dependa de uma decisão humana, mesmo que tenha a grandeza e o selo do meu pai, o rei.
- Isso já se verá -  disse o rei, que atacado no seu orgulho  mandou encarcerar á sua própria filha durante anos.  De vez em quando ia visita-la e dizia:
- Continuas a pensar que es tu quem decide o teu destino e não o teu pai, o rei?  Mas ela nem lhe respondia.
Um bom dia a paciência do rei esgotou-se e decidiu libertar á princesa num infame deserto próximo ao seu reino, onde todo tipo de animais selvagens e seres excêntricos mal-viviam. Deixá-la no cárcere começava a pesar-lhe, o próprio povo começava a murmurar. Pô-la no deserto era um jeito de obrigá-la a pedir ajuda, de voltar-se para o seu próprio reino, de reconhecer a necessidade da sua família. Ali não teria o alimento que lhe levavam tranquilamente na cadeia.
A princesa pensou enlouquecer ao principio. Cantava canções  e murmurava estranhas palavras. Parecia uma indigente, uma mulher muito mais velha, uma espécie de bruxa. Realmente quase não parecia humana mas a pouco e pouco foi encontrando uma cova onde dormir, num pequeno oásis encontrou agua e tâmaras. A que outrora foi princesa real era agora uma camponesa selvagem mas gozosa e viva. Na chegada do verão tinha feito uma casa, obtinha frutos e muitos animais a conheciam e respeitavam. Ela pensou que, com certeza, nada disso era controlado pelo seu pai.
Um dia apareceu um ginete, um homem de grande riqueza e inteligência, que ao ver a semelhante ser percebeu algo mais que uma simples camponesa. Havia uma presença real na sua dição, nos seus gestos. O coração do ginete ficou apaixonado e começaram um idílio. A princesa apaixonou-se da sua nobreza e da sua percepção.
Em breve tempo o que outrora tinha sido um deserto, era agora uma  próspera cidade. Muitas pessoas e seres excêntricos se integraram perfeitamente. Os que eram considerados inúteis na cidade ali eram grandes artistas, poetas ou grandes artesãos. Havia músicos, pintores e cientistas. Todos decidiram que a princesa e o seu esposo fossem os reis de aquele singular país.
A fama chegou a ao reino do pai, quem curioso de ver o que ali se passava decidiu ir em comitiva, a presentar os seus cumprimentos aos novos reis de tão maravilhosa nação de paz e justiça que tinha surgido aos pés do seu próprio reino.
Quase arrastando-se até o trono dos novos reis o velho rei pôde ouvir como num longo sussurro as palavras pronunciadas pela sua própria filha:
- Podes ver, Pai, que cada homem e cada mulher tem o seu próprio destino e a sua própria eleição.”

Durante um tempo ficamos em silêncio e senti que não tinha nenhuma pergunta a fazer. Em certo modo a minha “consulta” com o Doutor Castro tinha chegado ao seu fim.

Quando cheguei á Escadinhas da Saúde encontrei a Lorcan na entrada do portal.

- Acabo de estar com o dono do prédio para pagar-lhe a mensalidade. Sabes o que ele me disse?
- O que?
- Pois que estamos a morar onde viveu o  que matou ao último rei de Portugal!
Fiquei sentado nas escadas durante um tempo. Que sentido tinha tudo aquilo?