-Eu sei o que há no Alcorão
-E que há no Alcorão?
-No Alcorão há uma flor prensada e uma carta do meu amigo Abdullah.
(Dito da tradição Bekthasi)
I
Rustam Ciçek fez um aceno sobre a falua branca que se alçava na noite branca. O gesto amável e decidido sob a lua e os vidros estilhaçados do magnífico serão iluminado. Rustam Çiçek era o capitão inclinado e a melodia do seu sorriso elevava-se ao vento do sol-pôr, punha os seus longos dedos entre os cabelos e a brisa do mar, enquanto Ibrahim cantava, sussurrando, uma canção de berço tão antiga como as rochas da Anatólia. O barco ancorava na praia das Ilhas Afortunadas e uma nova e deliciosa nota procedia das ânforas antigas, dos toneis de vinho, do trigo acumulado, dos basaltos e as flores das ruas em fogo.
- Que a paz seja contigo, ó terra afortunada!- dizia Çiçek
– Que a paz seja contigo, ó terra por sempre amada! -dizia Ibrahim
Os pássaros começavam a reunir-se sobre os telhados vermelhos: as gaivotas embranquecidas, os corvos insones, as corujas pacientes esperavam aos amigos. Cumprimentavam e até falavam na sua linguagem misteriosa e comunicante. Então Ibrahim e Rustam Çiçek ficavam durante um tempo em silêncio, a ouvir as suas subtilezas. Uma grande gargalhada explodia como cores que se espalhavam pela vila de ruas de madeira e janelas de zinco e todas as aves acompanhavam aos arlequins e navegantes da noite.
Oh, a elevada e viva noite das palavras enfeitiçadas, da magia das afinidades secretas, das cumplicidades de pedras e pássaros, de rosas e rochas, e homens de beleza extraordinária!
Clara e Ofélia esperavam no grande pátio da Ilha, no mercado aberto ás estrelas, aos comerciantes fenícios, aos gregos, aos árabes, aos refinados homens das terras de Sião, aos iemenitas ou ás sinuosas e belas mulheres do Indostão. Os matemáticos, os filósofos, os poetas e também os músicos esperavam enquanto as vozes e as notas provocavam um evocativo murmúrio de ancestrais caracolas e planetas longínquos. Os velhos e antigos países da terra se acendiam no peito e nos corações que alumiavam todas as lendas e velhas histórias de chá e amêndoas, de tâmaras e princesas. Clara erguia-se elegante e esbelta, a saia de uma seda selvagem envolvia o seu corpo estilizado, enquanto a sua cabeleira de ouro encarnado tirava os fios do sol que se ocultava no mar azulado e negro.
Rustam Çiçek e Ibrahim olhavam para Clara e Ofélia e respiravam profundamente, e fechavam levemente os olhos, a ouvir, a ouvir…
E tudo conspirava agora nas mais longínquas constelações. Uma remota amizade envolvia o círculo da memória. Um vento assobiava na pele viva da terra, nos corpos maravilhosos de uma arte régia e obscura: eram os olhos de Ibrahim ao contemplar a Ofélia, a dança de Clara e Çiçek que comovia aos filósofos e aos poetas, aos sábios da China, e as próprias Ilhas Afortunadas tremiam de soluços e cócegas.
Canção
Hoje vi as estrelas na mão do meu amado
os seus lábios eram mudos e os seus dedos
eram o suave mel dos meus cabelos
E eu canto toda a noite o velho fado
prendida pelo vento aos tornozelos…
Um beijo de fogo e gelo, um raio vivo
esta noite sou feliz c’o cervo amado
e ofereço as minhas tranças e cabelos
e as pétalas de rosa pelo trigo
ao rei que me prende os tornozelos…
II
Olhai agora, ó amigos, os azulejos e os basaltos das fontes antiquíssimas, a elaboração artesanal do conto que flui na noite única. Escutai, pois, as palavras de Rustam Çiçek que pausada e gravemente tece uma antiga história no cenário da Ilha, perante os barcos veleiros e os pátios iluminados, na praça central do mercado. Os vidros e os cafés, os guindastes e as prateleiras, as montras das lojas ocultas na memória, o bazar de cobre sobre tapetes vermelhos, as chávenas e o chá oferecido em silêncio, no silêncio cúmplice de uma fala antiga…
- Houve uma vez, ó nobre e digna gente – dizia Çiçek com um sorriso e uma piscadela de olho – um rei conhecido como Hatim Tai, o homem mais generoso que jamais existiu. A sua prodigalidade e as suas festas eram proverbiais e assim era amado pelo seu povo. Austero e generoso, loquaz e sóbrio, gentil e reservado, combinava em si todos os contrários e paradoxos da humana condição, envolvidos na harmonia de uma sabedoria imemorial. A felicidade e a satisfação reinavam na terra de Hatim Tai.
Mas a inveja e a cobiça ilimitada espreitavam num reino vizinho e um dia a negra ameaça tornou-se real. O pequeno reino de Hatim Tai estava pronto a ser arrasado. Então o nosso nobre rei compreendeu que por muito que se esforçasse em deter o ataque, afinal seriam derrotados, tal era a superioridade do exercito atacante. Deliberou profundamente que estratégia seguir e, finalmente, tomou uma decisão. Chegou a um trato com o rei vizinho: deixaria o trono e assim se evitaria um derramamento de sangue mas o novo rei devia-se comprometer a manter a situação de direitos e propriedades das que gozavam os seus súbditos.
Hatim Tai fugiu para o monte e tomou o manto dos dervixes.
A um aceno das sobrancelhas de Rustam Çiçek todos começaram a cantar, com especial ardor as crianças.
(Hatim Tai deixou o trono
a um rei falaz, soturno e duro
sem luta, sem raiva, sem fogo
Hatim Tai levava o povo
dentro do seu coração puro!)
A noite era cálida e antiga, e havia uma voz que sussurrava nos corpos, em sílabas apenas intuídas, nas janelas e luminárias de uma rapariga perdida numa cidade longínqua a reler os velhos arcanos de um conto do Talmud. Ou a história do navegante próximo da lua a recordar a rapariga-filósofa, florindo e sangrando no seu coração.
Os pássaros falavam com Ofélia e Clara, animadamente. A coruja, o mocho, o corvo elevavam-se enfebrecidos pela história de Hatim Tai. Ó, Hatim tai, o nosso amado e generoso Hatim Tai- diziam. O corvo, entusiasmado, lançava um pronunciamento profético. A coruja e o mocho balançavam sopesando as suas palavras e, com tenra gravidade, matizavam diplomaticamente as suas fulgurantes expansões do que, inevitavelmente, teria que acontecer.
- Muitos súbditos guardaram a boa memória do rei mas não todos – continuava Çiçek. Alguns começaram a pôr em dúvida os seus atos, pensando que tinha escolhido uma forma fácil de fugir aos problemas sem assumir a verdadeira responsabilidade do seu cargo. Outros não falavam mal dele mas os seus corações arrefeceram como crianças que não compreendem a ausência do pai que deve trabalhar longe para sustentar a família.
A fidelidade e a lembrança que na maioria dos súbditos ainda permanecia firme fez ao rei usurpador proclamar um bando em que se ofereciam mil dinares de ouro ao que capturasse a Hatim Tai. No fundo, era uma permanente ameaça ao seu poder e já estava arrependido de ter feito trato algum.
Um dia Hatim Tai caminhava pensativo pelo bosque quando ouviu uma conversa:
– Se tão só tivéssemos a sorte de prender a Hatim Tai, seriamos ricos e felizes para o resto das nossas vidas, especialmente a tua, pois eu já tenho pouco tempo por diante – dizia um velho lenhador à sua jovem esposa
– Deverias sentir vergonha, disse ela, de falar desse modo do nosso rei. Ele que se sacrificou a si mesmo pelo nosso bem-estar. Uns poucos mais que pensem como tu e a sua vida terá sido em vão
– Essas palavras são muito belas, mas quem sabe se o não fez pelo seu próprio interesse?. És muito nova e muito ingénua.
Então Hatim Tai, apresentou-se diante do lenhador e disse-lhe:
– Aqui estou. Eu sou Hatim Tai. Leva-me diante do teu rei e obtém o ouro que tanto prezas.
(Hatim Tai deixou o trono
a um rei falaz, soturno e duro
sem luta, sem raiva, sem fogo
Hatim Tai levava o povo
dentro do seu coração puro!)
- Oh, Hatim. Tu és o meu rei. Como poderia eu fazer isso? Perdoa as minhas palavras de fraqueza e estupidez.
Mas nesse momento apareceram um grupo de soldados e apressaram-nos, levando-os todos à corte. O lenhador ia cabisbaixo e sem dizer uma só palavra, como se esperasse uma sentença de morte.
Quando chegaram ao palácio os soldados pretendiam ser os captores de Hatim Tai e assim cobrar a recompensa. Produziu-se uma pequena confusão, quando Hatim Tai pediu falar:
– Majestade, penso que eu devia ser também ouvido. Foi este velho lenhador que me capturou e deve ser ele quem cobre a recompensa. O lenhador ficou estupefato. Começou a falar:
– Majestade, não foi assim que aconteceu. E contou como Hatim se tinha entregado depois de ter ouvido a conversa com a sua mulher.
O novo rei estava assombrado. Ainda falou a gaguejar:
Oh!, Hatim, que fazer?. Se te mato viverei à sombra da minha vileza escurecido pela lenda da tua generosidade, que se engrandecerá. Se te encadeio será um constante motivo de rebelião, que acabará finalmente comigo, pois ninguém pode dominar de jeito duradouro sem a legitimidade do seu povo. Por favor, recupera o teu trono e aceita-me como amigo, de jeito que a minha riqueza seja que acudas aos meus convites, pois ninguém pode competir com os teus.
Hatim sorriu e disse:
– Está bem, aceito o trono – e pondo a mão sobre o queixo, disse:
– E pensarei o dos teus convites!
(Hatim Tai deixou o trono
a um rei falaz, soturno e duro
sem luta, sem raiva, sem fogo
Hatim Tai levava o povo
dentro do seu coração puro!)
Olhai, amigos, a música das balalaicas do Bósforo escrita nas páginas vermelhas do assombro. A dança dos pássaros e as crianças que tingem de gozo o conto de Çiçek enquanto as cumplicidades subtis se elevam com dignidade: os lugares de confiança das mulheres!.Clara e Ofélia levavam a lua na mão e nos dentes a sorrir, a sorrir…
III
Ó Lua encantada no fundo do poço,
Moirinha da Mágoa!
O balde descia, quimeras de Moço!
Trazia só água…
(António Nobre, Só)
Houve na alvorada um movimento das águas, o verde mar parecia remoinhar-se quando o ferreiro Mago apareceu. O ferreiro Mago há tanto tempo desaparecido!. Carregado de redes e bigornas, o seu cabelo e barba vermelha, o seu manto régio e encarnado e, sobretudo, o seu rosto, sereno e sério. O ferreiro Mago era uma estoica aparição que caminhava pela praia, lento, parcimonioso, como se uma velada tristeza opaca-se a sua figura.
Outrora era o contador de contos que numa dança de espadas deixava que os espectadores recebessem o último bocado da estória como se dum alimento vivo se tratasse. Realmente era um alimento vivo. “O narrador viu que sim, que entendiam... podia continuar” Mas agora parecia transformado. Era o mesmo e não era o mesmo. A última vez jogava uma partida de xadrez perfeita, jogava a sua liberdade cada noite no Pavilhão Vermelho. Era assim...? ou pode que a memória se tenha transmudado?
Houve certa solenidade entre os amigos perante a visita inesperada. Um silêncio inundou a espontânea alegria quando, gravemente, Mago falou...
- Hoje um grande peixe falou-me. Foi uma conversa difícil, pois ele pedia-me mais do que eu poderia nunca oferecer mas consegui um trato. Levaria um sonho dum amigo, um sonho especial. Só isso poderá redimir o vínculo que agora nos une. Alguém de vós pode oferecer-me o seu sonho?
Alguém de vós pode oferecer-me o seu sonho?- repetiu.
Os amigos mostravam-se hieráticos e amáveis. Olhavam com certo distanciamento a Mago. Olhavam-se uns aos outros esperando uma resposta quando Ofélia avançou um passo. O seu vestido de flores e versos, a sua cadência, o seu estilo nobre e compassivo acertou a falar com singular gravidade:
- Querido amigo Mago, durante anos foste uma companhia sóbria e nobre. Sempre foste para nós uma presença que nos conferiu um ponto de estilo e solenidade. A nossa juventude aventureira e alegre sempre foi balançada pela tua estoica virtude. Intuímos sempre em ti sofrimentos não mencionados e destinos submersos. E isso sempre foi para nós um aviso e um jeito de nos manter acordados sem entregarmo-nos, solitários, a um destino feliz mas insulso. Hoje, amigo, quero oferecer-te o meu sonho. Esta noite, enquanto a fogueira ardia perante o mar e as faíscas e as labaredas voavam até as estrelas fiquei levemente adormecida... e um grande peixe veio a mim...
- Que bela es, oh mulher! – dizia o peixe extraordinariamente azul!
- Quem es, que queres?- perguntei hesitante e temerosa.
- Es bela sim mas...
- Mas que?
- A tua beleza não é suficiente... e algum dia será a tua desgraça!- disse o peixe azulíssimo
Devo dizer que nesse momento senti que a sua voz era maligna e que algo terrível podia acontecer, realmente. Um medo terrível ensombreceu o meu mundo. Tudo parecia perder cor.
- Pensas que sou maligno não é assim? Mas deverias conhecer-te melhor. Pode que eu não seja mais do que um pedaço de ti!
Ele conhecia os meus pensamentos!. Quem podia ser? Uma terrível curiosidade embriagou-me quando ele voltou ao mar. Foi-se afastando rápido, rápido, rindo a gargalhadas. Que terrível riso!
Por um momento fiquei gélida, imóvel, quando o suave zéfiro bateu no meu rosto e senti uma quietude, um calor que acendia o meu ser propagando uma tenra calma.
- Não tenhas medo do peixe azul, filha - disse uma voz suave e maternal. Ele tem razão, ele só é uma parte de ti.
Caminhei pela praia ao vento. A lua era amiga e o mar chamava por mim e eu caminhava, caminhava pelo mar adentro. Comecei a ser rodeada por milheiros de peixes de todas as cores: verdes, brancos, vermelhos, azuis, como um grande arco-íris flutuante. Ao longe um grande veleiro olhava-nos. Os peixes, grandes e pequenos, berravam-me, assobiavam, saltavam diante de mim. Então comecei a me oferecer. Primeiro um pedaço da minha mão. Fui partindo e lançando os meus dedos, os pés. Sentia cócegas e os peixes brilhavam com intensidade. Deixei-me cair nas águas a dissolver-me enquanto as suas bocas me comiam, me bebiam. As cores do meu vestido também se dissolviam e toda eu me expandia no mar. E era feliz, e intensamente alegre. Tudo me fazia cócegas.
Eu estava outra vez na praia, serena e limpa, quando o peixe azulíssimo apareceu. Olhou-me amorosamente e disse:
- Obrigado, amiga. Já estou curado.
Mago fez uma digna inclinação, absolutamente silencioso, revelando um profundo agradecimento perante todos os amigos. Começou a andar novamente solitário. Ao passo dum certo tempo estava no centro do negro mar. Um ponto vermelho no negro mar.
IV
Autum
A touch of cold in the Autumn night/ I walked abroad,/ And saw the ruddy moon lean over a hedge/ Like a red-faced farmer./ I did not stop to speak, but nodded,/ And round about were the wistful stars/ With white faces like town children.
Outono
Um toque de frio na noite de Outono /Eu ia ao estrangeiro,/ e inclinada sobre uma cerca vi a lua avermelhada/ como um granjeiro de rosto rubro./ Não me parei a falar, mas movi a cabeça,/ e em toda a parte estavam as pensativas estrelas/ com faces brancas como crianças de povo.
(Thomas Ernest Hulme)
Era o tempo da vindima, o outono da luz oblíqua, das primeiras folhas amarelas á beira dos caminhos. Os animais carregados de uvas, e a paisagem tingida da cor das violetas, as roupas embebidas de sangue obscuro, os rostos alegres, luminosos. Os sendeiros da transformação do cobre outonal, o ritmo musical dos trabalhos e dos dias: o magnífico serão de fogo, a noite como uma roda de danças e cantos.
Os amigos contemplavam as filosofias implícitas, a matemática precisa do bailado teatral do mundo.
- Pode ser –dizia Çiçek – que precisemos uma invocação e um encantamento das palavras para que o diálogo alcance o tom preciso, o estilo depurado, a consciência íntima.
- Certamente – diria Ibrahim- não dizemos sintaxe mas “táctica e posições das sementes significantes”.
- Os amigos riam e Clara e Ofélia olhavam o inicio do jogo improvisado mas pautado pela cadência rítmica e gestual.
- Semântica, é na verdade – dizia Çiçek – “a mântica das sementes mentais“. Não nos confundamos. Trata-se de uma “phisis” da compreensão. A palavra deve ser plantada e a cultura é, em realidade, agricultura. Estes são os alicerces. Isto é filosofia – dizia com convicção.
- Deste jeito- ia dizendo Ibrahim- a compreensão da “dinamis” (potência) e a “energeia” (acto) resulta muito mais clara. Então Aristóteles não é o que parece.
- Nada é o que parece! – sentenciava Çiçek.
- Aristóteles oferece um bom húmus- intervinha Clara- onde algumas sementes podem desenvolver-se. Há uma terra onde crescer, há um campo fértil mas pode que o elemento fogo e o elemento ar sejam insuficientes. De facto o cultivo de arroz poderia ser bom aqui mas outras plantas ficariam asfixiadas. Pode que os frutais padecessem. Mas o carvalho poderia ser!
- Concordo, dizia Ibrahim, mas haveria que ver caso por caso. Em alguns lugares o carvalho é ideal mas não, precisamente, o arroz. Não vejo inconvenientes para as laranjeiras ou algum tipo de macieiras, eventualmente.
Clara pôs um gesto hesitante e arquejou as sobrancelhas, algo incrédula.
- Em todo o caso – disse Ofélia – não são campos para ajardinar. Fazer um jardim com o material aristotélico resultaria, finalmente, opressivo. As flores mais delicadas não poderiam sobreviver. As cores mais subtis estragariam, mas concordo que tem muito alimento.
- É evidente que para certas perspectivas há muito negócio mas para nós acabaria por ser uma ruína, não há dúvida – dizia, sorrindo, Ibrahim.
- Estamos a perder o fio do tapete, disse Çiçek. Penso que devemos aproveitar estes momentos um tanto prosaicos para indagar os princípios mesmos, pois tenho ouvido que em certos territórios obscuros fazem uma distinção entre mito e logos tão extrema que suspeito devem ser lugares onde existe uma ditadura tão infame que as sementes nem chegam a nascer.
- Certamente são lugares onde existem palavras sem compreensão, ciência sem princípios e arte sem gratidão – afirmou Clara.
- É algo possível, realmente? – perguntou Ofélia.
E Ibrahim afirmava com gestos de resignação e inquietude:
- Certamente é possível mas não é real!
- Tenho entendido que nos lugares obscuros dos que falei fazem uma distinção que considera o logos como lógica e o mito como ilusão – disse Çiçek
- O que fazem – retorquiu Clara – é uma assimilação do logos sintático, se quiserdes, do logos com táctica, ao logos seminal ou semântico.
- Este desligamento interno do verbo ou palavra converte o discurso em manipulação quando não em guerra ou violência aberta. E antes de que Ibrahim pudesse acabar interveio Ofélia:
- Produz uma separação artificiosa das polaridades, elimina a tensão dos contrários, conduz ao homem á guerra medrosa e falsa e á mulher á passividade que não sabe educar ao seu povo. Que triste!
- E, sobretudo, não se suporta o silêncio – disse, harmoniosamente, Clara.
A palavra silêncio produziu em todos um efeito catártico. De súbito tomaram consciência do perigo no que se achavam. Por um momento, a verdade que os punha num contato subtil pendia dum leve fio invisível. E o silêncio estendeu-se, suave e macio, nos amigos e nos poetas, nos espectadores e até nas velas cristalinas que anunciavam a lua avermelhada.
De novo os olhos de Çiçek e Ibrahim contemplavam a Clara e Ofélia. Eram novamente as crianças de olhos luminosos nas terras afortunadas. A filosofia real parecia voltar ao seu ser, e o recordo do tempo inaugural inundava, como uma fonte antiquíssima, os seu corações. “E os olhos eram lavados pelas cristalinas gotas de um mar interior de peixes e pássaros voadores”. Foi então que Ibrahim pronunciou umas palavras:
- Queridos amigos, já que uma pequena mácula tocou hoje o nosso encontro gostaria de vos oferecer um poema que faça honra e justiça á nossa amizade e que purifique os ares de toda malignidade e presunção.
Todos os amigos inclinaram a cabeça em amorosa saudação enquanto uma jovem tingida da cor das lilás começou a tocar o nei.
Pensar
pensei que os teus cabelos fossem trigo
que me trouxe o vento para debicar
pensei que as rosas bravas do jazigo
eram versos de inverno para amar
pensei que a lua pintada nos teus olhos
fosse uma estrela lançada desde o mar
pensei que as janelas sem abrolhos
eram portas secretas ao teu lar
pensei que os teus cabelos fossem trigo
que o vento me trouxe para debicar
(nas tardes de Anatólia sou, amiga,
uma rosa de nenhum lugar)
pensei que o mel fosse destino
de corpos destinados a se amar
que as pedras fossem no caminho
antigas lendas para além do mar
pensei sem palavras e sem vinho
deitado junto às vides do lugar
que os teus cabelos eram trigo
enlaçados aos meus dedos para amar…
(- Dizei-me, ó meus amigos,
se pensei, sinceramente,
bem ou mal.)