A anciã estava sentada sobre a rocha enquanto
contemplava o fim da tarde na companhia da sua neta e o seu gato. Perto a sua
casa de telhado vermelho, a árvore, o
poço...
Avó- Pensas que há alguma causa que
possa explicar o fato de estarmos aqui juntas a contemplar o sol-pôr, a ouvir a
passagem do vento, a termos esta conversa?
Neta- Sim, pode que não uma causa mas uma
multiplicidade de causas que finalmente explicam o porquê estamos aqui.
Avó- E poderias enunciar alguma?
Neta- Alguma sim, mas todas é impossível. Por exemplo, segundo
Aristóteles, haveria quatro tipos de causas. A causa eficiente, neste caso, poderia
ser o nosso desejo de estarmos aqui. Este desejo, por sua vez, dá lugar ao
nosso encontro.
Avó- Mas Aristóteles fala, se não me
engano, de uma causa final. Qual seria a finalidade de estarmos aqui? Por outro
lado, ocorre-se-me pensar que a causa eficiente que apontas poderia ter, pela
sua vez, outra causa. E qual seria essa causa?
Neta- Pode que a finalidade seja o
estarmos aqui, sem mais considerações. Ou pode que a finalidade seja que
obtenhamos mais sabedoria. Pode que haja uma finalidade que desconhecemos.
Quanto á causa da causa eficiente poderia ser motivada por uma outra causa como
uma sustância química que se ativa no nosso cérebro. Enfim, poderíamos continuar.
Avó- Sim, poderíamos continuar até os princípios mesmos do universo
porque para que tu e eu estejamos aqui a conversar tiveram que dar-se toda uma
serie infinita (ou incomensuravelmente
finita) de causas que nos fazem estar (e ser!) aqui. Em que outro filósofo nos
poderíamos apoiar para dizer isto?
Neta- Foi Leibniz o que dizia que havia
uma razão suficiente dentro de um infinito de causas e condições que explicavam
o que acontecia. Desde este ponto de vista não existe o acaso mas uma
ignorância sobre correlação dos acontecimentos.
Avó- O estranho é que agora que desenrolamos
com bastante convicção a conexão das
causas há uma ideia que não me abandona. A questão é como algo pode ser causa
de outra cousa. Aparentemente os acontecimentos passam-se precedidos de outros
anteriores ao que chamamos causas mas o problema é explicar de que jeito isso
acontece.
Neta- Não entendo muito bem o que queres
dizer.
Avó- Lembras aquela vez que fomos ver A Flauta mágica?
Neta- Perfeitamente.
Avó- Então mantivemos uma conversa no
café perto do teatro, acho que se chamava Papageno
o café. Lembras?
Neta- Oh, claro. Lá havia um homem velho,
muito simpático. Tinha aspecto de camponês. Lembro que conversamos com ele por
um bom pedaço... e também como foi ridiculizado com certa ironia por um
professor da universidade.
Avó- Aquilo fez-me sentir vergonha alheia.
Não posso nem lembra-lo. Aquele velho homem era encantador. Nada resulta mais duro
do que ver o uso presunçoso do conhecimento típico de muitos eruditos. Tinha sido até caçador de feras no Amazonas e
lembras a sua teoria sobre a origem da vida?
Neta- Teoria é muito dizer. Ele tinha
utilizado a expressão “fermentação”. Um processo material de “fermentação” do
que surgiram as primeiras atividades biológicas. O professor começou a rir ás
escâncaras, dizendo que aquilo era acreditar na “geração espontânea”.
Avó- A isso vou. Qual é a teoria sobre a
origem da vida que defendem os cientistas?. Uma serie de interações do mundo
físico e químico que formaram uma sopa primigénia, e de aí, não se sabe muito
bem como, surgiu a vida. Qual é a diferença entre o camponês e o erudito?
Neta- A diferença é que o camponês era um
homem muito mais sábio, tinha sentido do humor, sabia contar histórias,
brincava com as palavras e nós estávamos encantadas de conversar com ele. O
professor podia ser agradável e inteligente mas no fim uma começava a inquietar-se e queria ir-se embora.
Falar com ele implicava certa tensão.
Avó- Exatamente. Em termos reais o
professor não sabia muito mais que o camponês. Só cria saber mais porque assim
foi adestrado. Foi ensinado a pensar que se pode dar uma descrição detalhada de
relações, que se pode explicar mais especificamente as cousas tem um saber mais
essencial. Poderia ser assim mas não era no seu caso porque ele achava que isso
lhe permitia zombar do camponês sem compreender que compartilhavam a mesma
visão, uma visão comum. O professor não compreendia que acreditava numa “geração
espontânea” um pouco mais sofisticada. Pode que se aplicássemos a “Navalha de
Ockham” o camponês saísse melhor parado.
Neta- Mas nós gostávamos de estar com o camponês e não com o professor!
Avó- Era um camponês de um belos olhos azuis! Tinha
uma voz grave e melodiosa! E a sua teoria da fermentação baseava-se na sua
experiência empírica na produção de vinho!. Que melhor amigo que esse!
Neta- Avó!!!
Avó- Mas voltemos ao tema!. A questão era
como uma cousa pode dar lugar a outra, não é? O certo é que o que podemos
comprovar é uma concorrência de fatos mas não que uma cousa seja causa inerente
de outra. Quando remetemos toda uma
série de causas no tempo a um suposto estado originário o problema reaparece.
Como surgiu o primeiro fato que vai, por sua vez, ser causa de outros fatos? O
nosso pensamento acredita que se uma questão a pode dilatar no tempo e no
espaço pode explicar os saltos qualitativos melhor. Mas só é uma ilusão óptica
. É como se um problema o tivéssemos mais longe. Deixa de ser tanto problema. Mas
é uma ilusão perceptiva. Desde este ponto de vista o aqui e o agora é tão
inexplicável como o primeiro momento do Big-Bang.
Neta- Já te contei que li um livro de
Stephen Hawking onde depois de descrever todas as teorias da cosmologia moderna
chega á conclusão de que possivelmente o Big Bang surgiu do nada?
Avó- É como quando um mago tira um
coelho de um chapéu. No caso da ciência esse coelho ainda tarda uns quanto
milhões de anos em chegar a ser mas essa potente magia do espaço-tempo ainda
impressiona mais...Como o mago não se esqueceu em tanto tempo de que ia tirar
um coelho!
Neta- Por certo, que o que dizes da
causalidade lembra-me Hume. Ele falava da causalidade como um fato psicológico
não como um fato empírico.
Avó- Trata-se de uma condição de certos
estados mentais em que nos desenvolvemos. Como quando compreendemos o tempo
como mera sucessão. É só uma imagem. E hoje sabemos que o tempo é dependente da
velocidade que por sua vez é dependente de uma consciência que tome conta. Sem
consciência como poderia haver tempo?
O gato estava sobre o colo da anciã,
desajeitado sobre a suas pernas . As nuvens avermelhadas eram fios que se
recolhiam no novelo do sol-pôr. A brisa era suave e cálida. Houve um longo
silêncio entre a neta e a avó.
Neta- Sabes, avó? Gosto de estar ao teu
lado. Gosto de estar contigo! Isso é tudo.
Avó- Eu também, minha filha, simplesmente, isso é tudo.
A avó e a neta sorriram como fazem as mulheres,
de aquela maneira que as mulheres sabem.
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